Capítulo 30

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Bebe água como um guerreiro caminhando pelo Deserto de Gobi. Pede mais, se organizam para irem buscar a água no poço particular de Donato. Come beterrabas adquiridas há dois dias, elogia o cozimento.
Belarmino surge no estábulo, avisa que devem sair. O chefe está ausente há quatro dias, não disse a data exata em que voltaria. Patro concorda, se levanta e leva o prato. O pé direito de Joabe escorrega, o joelho não está firme. Usa a outra perna, seu corpo fica torto. Clama para que eles não o deixem sozinho. Patro põe as mãos em seu rosto, promete que retornarão amanhã.
Um servente africano volta com o balde cheio. Fala para Joabe abrir a boca, depois joga, ele se engasga, o restante da água é jogada em seu corpo, diz que ele fede. Belarmino bate as palmas e grita para saírem, se despedem com um coro de "até mais ver". Caminham com a canção desesperada de Joabe.
É o momento de irem aprender, o destino é a casa de Armando. Aproveitam a ausência do chefe para ouvirem os portugueses, será a quarta reunião. Os dezesseis serventes descendentes dos povos africanos são os mais interessados, não faltaram em nenhum encontro.
Utilizam ruas e calçadas para desviarem das pessoas. Problemas ocorrem naquela terra portuguesa quando descendentes de europeus acompanham africanos desacorrentados. Apreciadores das bebidas destiladas os xingam, jogaram dejetos de quadrúpedes em uma ocasião.
A movimentação está amena na rua, chegam à casa rápido. São atendidos por um largo sorriso infantil. Afagam seu cabelo preto e esfregam seus ossos grossos dos dedos no topo de seu crânio.
Belarmino e Patro são os primeiro a entrarem no quarto de Armando. Patro beija sua testa, o outro português bate delicadamente no lado esquerdo de seu peito. O restante faz todos os tipos de carícias, alguns conversam com o homem de mente escura. O ritual antes da reunião está concretizado.
Hermínio serve a sopa recentemente feita, três aceitam, o cheiro desagrada a maioria. Os esfomeados terminam e pedem mais, o garoto corre e pega os pratos.
Belarmino abre o livro dos provedores, o qual percebo que não averiguei o nome. Há imagens eternizadas do título do livro nas mentes dos portugueses, se chama Provide et Offer.
O garoto retorna e entrega os pratos. Se acomoda ao lado de Patro, sempre está com eles nas reuniões. Belarmino começa a recitar a escrita de Adão do Sacramento, continua na página sobre o iscio da "Punição Como Ato de Domar". Patro tem vívido em seu espírito as escritas do criador de sua crença, é o ensinamento favorito de seu amigo.
Antes de falar, a mente de Belarmino recita a escrita narrada. As pálpebras o cega, as levanta, arregala. Declama falando rapidamente, não percebe. Anda para frente e para trás, os braços interpretam a entonação de sua voz, é um ator para os serventes.
— Isso tá errado! Castigo é bom! Faz hómi temer outro hómi!
Patro acorda com a vociferação alarmada. Está no chão, se levanta. Olha todos sentados, volta a posição.
O falante atende pelo nome de Tiago Arruda, apelidado de Aru. Suas mãos parecem patas de leões. Os braços são membrudos. O pescoço é uma pedra de granizo.
— Esse hómi que escreveu nunca lutô, não viu sangue saí da boca, não viu amigo caído no chão. O vencedor escolhe como controlar o caído — Aru continua.
— Não, Aru, se isso que fala é o certo, o castigo de Joabe é justo, não é. Homens não comandam o corpo e a vontade de outro, homens que ferem a carne são maus. O ferido buscará vingança, encontrará a razão, porém, o bom espírito não se vinga, ele supera. — Belarmino fecha o livro.
— Eu... Eu... Num concordo, não. Vingança é honra, a punição é família da vingança e cresce o hómi. — Aru bate em sua própria coxa, o barulho contra a pele é alto. Ele levanta e parte, dois serventes o acompanha.
Besouros acertam a janela de madeira, é o único som da sala. Belarmino anda até a porta. Patro olha para os lados, ninguém se mexe ou fala. Puxa o ombro do amigo, ele chacoalha e retira o agarro, se retira.
Patro cumprimenta Hermínio. Vai ao quarto cumprimentar o pai. Pede que os serventes o acompanhe. Os três alimentados dão os pratos ao pequeno. Se reúnem no lado de fora, refazem o caminho de ida.
A quietude os acompanham pela caminhada. Um assobio. Logo dois. Sete. Uma sintonia, então uma música, Patro contribui, tenta. Olha para o apressado Belarmino, o espera virar ou diminuir a velocidade, aparenta estar muito distante.
Chegam depois de Belarmino, observam-no correr ao avistar o cocheiro com Ilda. A pequena, de modo costumeiro, chora. Quando vê o responsável suas pernas ganham ímpeto, é abraçada e beijada na bochecha esquerda. Patro surge, abraça ambos, acaricia a cabeça da pequena. Belarmino avisa que irão dormir, se dirigem a senzala. Os outros serventes cumprimentam-no e seguem para o mesmo local.
Patro adentra a casa e ouve os roncos de seu chefe. Abre a porta do escritório, o visualiza dormir. A janela está aberta, a lua gera luz. Tenta encontrar algo interessante no cômodo, é a primeira vez que está lá sem permissão. Não há nada, decide se deitar.
Sua cabeça balança sem seu comando, vira o corpo para o lado esquerdo. Volta a posição de bruços. Sente estar sendo observado, o sumido chefe o encara e sorri. Está usando uma cartola, tem um novo e espesso bigode.
Cobre as ceroulas com o lençol. Donato continua olhando para ele, então diz:
— Te ensinarei o que Armando não pôde, se tornará mestre em teu trabalho após aprender a escolher as peças. Vista dignidade e suba na carruagem.
— Peças? Pensa em construir?
Donato sai, talvez não o tenha ouvido. Patro abre o guarda-roupa, não olha para os ternos, pega a toga, em três segundos a veste. O livro está no chão, se recorda de que está ali há muito dias. Se agacha, abre no iscio sobre o Criador do Ser, chora. Fecha o livro forçando os dedos, coloca no guarda-roupa.
Não ouvem a voz um do outro. O som mais potente é o da multidão. Mesmo sem observar o ambiente externo, Patro sabe que muitos estão reunidos no Porto do Recife. A luz solar queima seu couro cabeludo. O ar traz o odor de suor para suas narinas. estacionam em um armazém. Se aproxima da multidão não tão grande, sente o ar ficar abafado e mais quente. Agradece por ter escolhido a toga e não o terno.
Seu chefe pede espaço para os homens a sua frente. Mãos estendidas surgem em todos os lados, Donato cumprimenta cada um deles, ignoram Patro. Um trajeto é aberto, estão na frente, visualizam de perto "as peças".
O suor enxerca sua testa, seca com a palma, por sete vezes, não tem aderência naquela parte. Escorre para os olhos, ardem, seca com a toga. Seu canal respiratório parece estar entupido, respira e inspira pausadamente. Sente calafrios. A visão embaça com a mistura de lagrimas e suor, os globos oculares doem. Homens estão à sua frente, estão brilhando, óleo está em suas peles. Patro não consegue contar, eu o faço, são treze. Estão nus, acorrentados nas mãos, pernas e pescoço. As cinturas compartilham correntes uniformes que prendem a todos. Suas cabeças estão na mesma posição, semiflexionadas para baixo. Observa os pulsos com feridas arredondadas abertas e vermelhas, também atenta aos contornos ósseos dos rostos e dos ombros. Cobre a vista com a toga.
Donato o empurra com o cotovelo, está indo conversar com o responsável pelo leilão. Chama por Patro, não se mexe. Donato repete, permanece parado. Agarra seu antebraço, o puxa para perto de seu rosto, fala:
— Aprenderá como escolher uma peça, se quiser continuar a ganhar réis e ter dote para se casar com minha filha deve me acompanhar. Não escolho negros há anos, porém, tenho bons olhos e boas mãos.
Repele a sensação que esquenta seu corpo e bloqueia seus pensamentos, anda a frente do chefe. Para próximo do primeiro acorrentado da fileira. Não usa a visão nele, sente que o olha.
Visualiza o chefe apertar o bíceps direito do homem ao seu lado, depois o ombro. Muda a pegada, aperta a coxa e a panturrilha. Donato chama Patro, então diz:
— Começo pelos membros que são de meu interesse. O negro deve ter braços e pernas fortes para aguentar os trabalhos da terra, sabe de tua força, só parrudos conseguem domar ela. O próximo é ver a boca, doentes nunca! — Aponta o dedo indicador esquerdo perto do nariz do servente.
Chama o homem responsável pelo leilão, fala em seu ouvido. Ele se desloca até o banto, grita com ele e lhe bate na face. Usa os dedos indicador e polegar como pinças e puxa seus lábios. Donato olha os dentes, usa o dedo para bater, as batidas são firmes. O homem do leilão desloca a cabeça para perto do olho do banto. Faz o gesto de abrir a boca, ele entende, Donato visualiza o interior.
Patro está com os olhos fechados e com o pescoço baixo. Salivas entram em seu ouvido, depois ouve:
— Este está com hálito de doente e as gengivas estão com bolas escuras, não vale meus réis. — Donato puxa o cabelo da nuca de Patro rapidamente. — É tua vez, olhe e escolhe uma peça, faça o que fiz e não se apresse, quero o negro mais forte. — Empurra suas costas com a mão esquerda.
Patro olha para os cinco homens da primeira fileira. O corpo enrijece, limpa o suor da testa, encara a palma molhada. Balança a cabeça para os lados, diz "não" sem vociferar, repetidamente. Anda para trás encarando o banto a sua frente. Olha para a multidão e se vira,  seus braços são usados como facões. Donato grita para que volte. Vê seu servente se afastar. Corre e ultrapassa a floresta de compradores, depois entra no caminho do sol.
O rosto está na direção do azul. O ar preso em seu corpo sai pelo nariz e a boca. Solta o conteúdo gástrico, a respiração melhora, o corpo cessa os calafrios. Escuta a voz de Donato atrás de si. encara a imagem distante, corre, ignora o calor.
Pessoas param para vê-lo correr, alguns o xingam, ouve palmas, repara principalmente nas risadas. Cachorros latem, alguns correm atrás dele, mordem seus tornozelos, acelera. Cavalos trotam, está confuso, olha para trás. Uma carruagem está vindo com velocidade na rua. Patro se desloca para a direita e bate o ombro em uma porta. O veículo estaciona, ele reconhece o modelo. Donato põe a cabeça para fora da janela, expõe e move o braço esquerdo sinalizando para que volte.
O cocheiro refaz o caminho para o armazém. Donato ordena que Patro desça. O provedor está olhando para o assento a sua frente, é empurrado pelo chefe, não muda a fisionomia raivosa. Ele agarra sua testa e a joga para trás. Desce do veículo o amaldiçoando com palavras criativas. Patro folga a nuca no assento, adormece.
A carruagem está sacodindo, sua cabeça acerta o teto, seu chefe está ao seu lado. Retornam para a fazenda, a porta da casa é batida, escuta a tranca.
Visualiza três homens próximos do estábulo onde está Joabe, de repente somem ao receber o olhar deles. Anda até o local, ainda está no horário de trabalho, ninguém cessa seus serviços e vaga pela fazenda. A ordem é trabalharem e irem comer para posteriormente repousarem na senzala.
Empurra as portas do estábulo. Cobre o nariz com a manga da toga, solta um berro curto. Não há ninguém, se aproxima, as correntes sumiram. Pratos e copos vazios estão no chão. O procura nos espaços dos cavalos, inclusive debaixo do feno, o faz em vão.
Bate na porta da casa com contundência, o chama engrossando o tom da voz. Não ouve movimentos na casa. Usa as duas mãos contra a porta, a tranca se desfaz, põe as mãos na cabeça. Donato desce as escadas, o amaldiçoa, segura sua toga e traz sua face para si. Patro conta sobre Joabe, é solto de imediato, o vê subir. Logo reaparece sem o paletó e com uma cartola, o puxa novamente.
Param de andar ao alcançaram o estábulo. Donato segura seu rosto com ambas as mãos e diz para que fique ali.
O chefe se dirige para o local onde estão seus serventes. Tira de seu coldre bege uma pistola preta, aponta para cima, a bala faz seu caminho. Três se deitam no chão, oito dobram os joelhos e colocam seus objetos de trabalho à frente de seus troncos e rostos, o restante paralisa.
Donato balança o corpo inteiro ao ordenar que o acompanhem. Belarmino levanta e é o primeiro a obedecer, bate palmas para que o sigam. Lentamente caminham, o chefe corre e berra para serem mais rápidos.
Adentram o local fedendo a urina e fezes de diversos animais. Patro sente náuseas. Os outros olham para o chefe ou para o chão. Donato mostra os dentes como um predador faz, aponta o totem manchado.
Ninguém fala, focam no objeto apontado. Donato se aproxima do grupo, bate mansamente no tórax do primeiro, continua a ação nos outros sem usar a voz. Apoia a mão no totem, massageia os olhos. Abre, estão vermelhos.
— O cão que libertou meu escravo não mais se esconde. Elói me falou sobre três covardes que correram deste lugar. Não ouvi os latidos dos covardes, estou magoado, queria ter atirado na face e chutado depois. — Donato se aproxima novamente da fileira.
Consome os olhares. Para na frente dos serventes por aproximadamente quarenta segundos. Belarmino endurece a face, evita tirar os olhos, o chefe anda até o próximo.
O homem respira profundamente e solta o ar bruscamente. Os lábios estão escondidos entre os dentes, o masseter está pressionado e à mostra. Donato fala com o servente:
— Aru, estou convicto que é um dos cães. Fede, teu fedor é igual a de covardes, revele o que fez, poderei pensar em um brando castigo.
Aru junta os dedos, levanta o punho, está perto do rosto do chefe.
— É culpado! — Donato afasta o punho para baixo com a mão esquerda. — Irá me bater por ódio? Por raiva? Por mágoa? É uma mulher ou cortaram-lhe os culhões? Guarda no teu espírito teus ressentimentos comigo. Muita fraqueza está perto de mim. Venha — Bate no próprio rosto duas vezes —, bata.
Aru olha para seu punho ainda fechado. Depois olha para o lado direito, todos observam o chefe. Volta a encará-lo. Abre a boca, reúne ar, fecha. Donato bate em seu peito, não sente impacto do golpe. É agredido novamente, o estalo faz todos o olharem. O terceiro é um soco, Aru utiliza o pé direito para reter o impulso.
Pressiona os dedos na palma, movimenta o braço direito para cima, acerta a barriga de Donato, que coloca as mãos no local do ataque, faz um som semelhante quando se está engasgado. Aru olha para o clarão, abaixa o pescoço, percorre uma grande distância em seis passos. Mira as cercas, pula sobre elas, continua a correr.
Donato urra, parece um urso. Segue Aru, manda que o sigam também, quase todos vão, permanecem Patro e Belarmino.
— Precisamos sair desta fazenda — diz Patro.
— Sem debate por mim, procure a senhorita perfumada. Elói — Aplica um tapa na própria boca —, ou Patro, apenas tu pode nos salvar.

AVENÇA IMORTALWhere stories live. Discover now