39: Percepções tardias

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Alexia notou o quanto a relação dela com Filippo havia mudado apenas naquele instante, quando o fato de os dois ficarem muito mais tempo em silêncio que conversando não pareceu um incômodo. Na verdade, chegava a ser natural, como se sempre houvesse sido assim; como se Alexia nunca houvesse ficado nervosa na companhia dele, tentando antecipar os pensamentos do garoto.

É estranha a forma como a vida age de maneira silenciosa, fazendo com que percebamos que algo mudou apenas quando o ciclo está finalizado e não durante o processo. Naquela noite, quando já não havia mais quase ninguém na rua e Alexia já não se sentia como se carregasse uma cruz nos ombros por ter podido desabafar com alguém, ela percebeu que não apenas a relação entre ela e o rapaz havia se modificado com o tempo, mas a forma como ela o enxergava também.

Sob a fraca luz de um poste não muito distante e do luar acima, o perfil de Filippo era delineado em todas as suas qualidades e também defeitos. Certamente, para a maioria das pessoas, ele devia ter um nariz maior que a média e um queixo pontudo. Porém, Alexia percebeu que isso nunca havia importado. Ela sempre o achou bonito. Pele bronzeada, cabelos castanhos na altura dos ombros, olhos da mesma cor e barba quase sempre por fazer...

"Está me deixando constrangido por ficar me encarando assim", o rapaz falou, quebrando o silêncio e a fazendo voltar à realidade.

Todavia, como normalmente faria ao ser pega, Alexia não desviou o olhar. Ela permaneceu com os olhos nos olhos de Filippo, que arqueou uma sobrancelha em indagação.

"O que foi?", ele quis saber.

Mas Alexia não soube o que responder, então apenas deu de ombros e ficou em silêncio.

"Certo", ainda desconfiado, Filippo semicerrou os olhos para ela, mas logo pareceu perder o interesse e simplesmente deitou na areia, pondo os braços cruzados debaixo da cabeça. "Você vai mesmo falar com o delegado Duarte, então?".

Depois de muito desabafar e ponderar, Alexia se viu tentada a seguir o caminho óbvio. Legalmente, Daniel não tinha nenhuma ligação com ela e Alexia ficaria de maior antes de ele tentar reivindicar qualquer coisa. Quanto a isso, ela estava segura. Mas não estava segura às próprias dúvidas, as quais somente ele poderia sanar: por que o delegado acreditava poder ser seu pai? Por que sua mãe mentira? Por que ele só havia lhe procurado agora?

Alexia abraçou os próprios joelhos quando assentiu.

"Se não fizer isso, provavelmente não conseguirei viver. Vou ficar o tempo todo pensando nessa loucura".

Por um momento, Filippo ficou em silêncio. Alexia pensou que ele estivesse pensando se apoiava ou não a sua decisão, mas o que o rapaz disse foi:

"Devíamos processar as novelas por fazerem parecer ser tão fácil. Elas que são cheias de reviravoltas dessa forma, as quais se resolvem fácil, fácil. Bastam alguns capítulos.

"Acha que a minha vida é uma novela?", a garota o olhou por cima do ombro, vendo-o abrir um sorriso sacana.

"Talvez um livro", disse ele. "Pode me dar a liberdade de escrever, mas adicionando um pouco mais de emoção".

"Mais emoção que eu descobrir que tenho um possível terceiro pai e que a minha vida mudará completamente de novo?", Alexia rebateu, acabando por deitar na areia também, para que pudesse olhá-lo enquanto conversavam.

"Digamos que a sua história tem a dose certa de drama familiar, a dose certa de humor, mas não a dose certa de romance", Filippo virou de lado, encarando-a.

"Vai mesmo falar do desastre entre Sara, Felipe e eu agora? Nem mesmo sei se posso tratar isso como um romance quando sempre sobrei na conta".

"Não estou falando deles", o rapaz retrucou. E, naquele instante, Alexia percebeu que seus rostos estavam mais próximos do que jamais haviam estado antes. Se se inclinasse apenas mais um palmo, seus narizes se tocariam.

(NÃO) FOI POR ACASO [COMPLETO]Where stories live. Discover now