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A chuva persistia.

De algum modo, ainda deitado, eu sabia não ser mais a criança de meu devaneio, além de não estar na casa dos meus pais. Mas sentia, em retrospecto, de uma única vez, todos os duros golpes que havia sofrido ao longos de todos aqueles anos — os percalços que enfrentei pelas curvas de aprendizado não naturais que minha inocência me fizera trilhar — até me tornar quem eu era hoje.

Ali, deitado. Naquele lugar desconhecido.

Um Daniel de poucas esperanças: no mundo e nas pessoas.

— Ele está ficando agitado — uma voz conhecida disse perto de mim.

— Não vai demorar muito mais para recobrar a consciência.

— Aposto que se você der um beijo, o Dani acorda na hora.

— Cala a boca, Lucas — a primeira voz voltou a soar.

Trouxe a mão sobre a testa, num ato inconsciente, e senti o ambiente silenciar ao meu redor, como se aguardasse algo. O ar trancado nos pulmões. As palavras por deixar as bocas. Meu corpo, pesado; minhas pálpebras, grudadas. Agressiva ao meu sistema nervoso, a luminosidade fazia minha visão arder e meu rosto orbitar entre a desorientação completa e o incômodo inerente a vida.

Porque estar vivo era resistir, acima de tudo.

A dores, atos, palavras.

Sobreviver.

Senti-me sem ar, ainda que com o pulmão cheio de alguma substância asfixiante.

— Calma, Dani, estamos aqui — uma mão pequena e quente buscou minha mão grande e gelada.

E a apertou.

— Apaga a luz do quarto, Ricardo — outra voz feminina disse, parecendo notar meu sofrimento.

Agradeci emudecido, com as pálpebras aos poucos se abrindo e...

Enxerguei quase nada. Apenas o teto claro do quarto. A memória voltando aos poucos. Virando o rosto, percebi pessoas aglomeradas ao meu redor — antes que de fato eu pudesse distingui-las. E isso só serviu para me sufocar mais.

Senti o corpo travar e uma dificuldade grave para buscar o ar.

— Se afastem um pouco dele, agora — alguém, que eu não lembrava quem era, ordenou.

E as pessoas pareceram obedecer, pois percebi um maior espaço para movimentar os braços e as pernas. Cada molécula de oxigênio sendo conquistada ainda com muita dificuldade, mas outro alguém — ou talvez o mesmo, não sei — me ajudou a erguer o tronco, tornando a respiração menos árdua.

Sem aviso, virei o pescoço com pressa e expeli um líquido grosso pela boca.

— Vai ficar tudo bem — disse a voz, acariciando meus cabelos. — Estamos cuidando de você.

Outros braços se aproximaram, limpando meu rosto. O pano tocou meus lábios secos. O mundo girou. Como se depois de muito esforço, meu peito e meus músculos ardiam. Encolhi o corpo tomando conhecimento do forte frio que me afligia e tentei balbuciar algo.

— O q-que...

Sem sucesso.

— Shhhh! — a voz pediu.

— Calma, Dani — disse outra pessoa.

— O que aconteceu? — insisti.

E foi aí que eu fiquei sabendo.

[...]

Enrolado em um cobertor, eu refletia sobre a sorte que tinha tido.

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