Capítulo 21 - Dia 157

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“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Mesmo entorpecido em seu sono inquieto, seu inconsciente  mantinha-se  alerta  e  repetindo  seu mantra fantasmagórico. Estava tentando se proteger de algo que sequer compreendia, mas não conseguia evitar. Entre flashes de lembranças longínquas, seus receptores auditivos recebiam sons conflitantes do fundo de sua mente, entre uma risada tímida e berros de pavor, sua própria voz rouca ecoava as mesmas palavras repetidamente.

“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Não saberia dizer quanto tempo já havia se passado desde que ela o aprisionara com tanto vigor e um fogo faminto nos olhos que o fazia temer ainda mais pelo próprio destino. Não temia mais a morte, havia possibilidades muito mais aterrorizantes e não se exigia muito esforço para compreender quais eram elas.

“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Tinha  dificuldades  em  manter-se  acordado. Sabia que não comia nada há alguns dias e, embora ela continuasse lhe fornecendo água, sentia os primeiros sinais do que acreditava ser desidratação. Os lábios estavam rachados como terra seca e, embora nos primeiros dias ele sentisse o gosto metálico do próprio sangue esvair-se de cada nova fissura, agora os cortes se tornaram mais profundos e absolutamente secos. Os braços haviam sido completamente mutilados com cortes verticais variados que ela fazia periodicamente com a precisão de um açougueiro cego.

“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Em todo o tempo que estivera ali amarrado à cama ela nunca fez menção de limpá-lo ou trocar a roupa de cama, de modo que o cheiro ácido de seus próprios dejetos o envolviam, uma mistura de enxofre e amônia que seria insuportável não fosse pelo fato de que não tinha escolha ou solução e já estava fraco demais para lutar. Perdera qualquer noção de tempo em razão da instabilidade a qual se encontrava. Não conseguia mais manter-se acordado e suas horas se arrastavam entre longos períodos de sono inquieto e longos períodos de medo e confusão.

“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Pela janela que ela insistia em manter aberta, os   grunhidos   se   tornavam   cada   vez   mais pronunciados,                tornando-se sussurros carregados pelo vento até a nuca dele, arrepiando seus cabelos ruivos na base do pescoço como uma amante excitada. Ele sentia que cada grunhido que alcançava sua mente era um convite, eles sentiam o cheiro de sua morte  se  aproximando  e  pareciam  convidá-lo  a participar  daquela  orgia  pútrida.  Ele  chorava constantemente, mas um choro seco de quem não possui  mais  líquido  suficiente  no  organismo  para desperdiçá-lo com as próprias emoções.

“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Nos primeiros sonhos perturbados que tivera, novos flashes dela invadiram sua mente, mas nenhum deles  concreto  o  suficiente  para  unificar  seu pensamento e tornar-se uma memória real. Não sabia discernir sua imaginação da realidade. A primeira lembrança de tocar os braços nus dela fora tão vívida que podia quase sentir o calor e a textura da pele pálida. Desde então, a memória se tornara distante e assumira uma incômoda tonalidade opaca e ele já não sabia definir se aquele toque fora um momento real perdido no passado ou um desejo reprimido que ele havia  transformado  em  realidade  em  meio  ao desespero que tomara seu ser.

“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”

Ele  perdeu-se  novamente  em  seus  sonhos doentios do passado que não conhecia. Revirava-se na cama imunda sentindo o cheiro da própria sujeira misturada com o odor infeccioso do pus que escorria das  feridas  abertas  no  braço.  As  juntas  já  não funcionavam mais direito, endurecidas pela falta de uso e qualquer movimento parecia levar horas para responder ao impulso elétrico inicial enviado pelo cérebro adormecido. Acordou quando a noite já havia caído lá fora. Sabia disso antes de abrir os olhos cansados em razão dos sons que ecoavam pelas ruas, mais calmos e menos incisivos. Aquelas criaturas se tornavam mais calmas quando a noite chegava e a temperatura  caía,  e  ele  não  conseguia  encontrar nenhuma razão lógica para isso. Sabia também, ainda de olhos fechados, que não estava sozinho. Entre a podridão  de  odores  que  invadiam  suas  narinas irritadas, sentiu o perfume cítrico que exalava dela, levemente  doce  e  perigoso.  Apesar  de  toda  a decomposição que ocorria dentro daquele quarto e que subia pelas janelas trazidas pelo vento chuvoso, aquele delicioso perfume era o cheiro que mais o apavorava, que o fazia sentir os músculos contraírem rápida e involuntariamente. Imediatamente, começou a sussurrar para si mesmo no escuro.

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now