“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Mesmo entorpecido em seu sono inquieto, seu inconsciente mantinha-se alerta e repetindo seu mantra fantasmagórico. Estava tentando se proteger de algo que sequer compreendia, mas não conseguia evitar. Entre flashes de lembranças longínquas, seus receptores auditivos recebiam sons conflitantes do fundo de sua mente, entre uma risada tímida e berros de pavor, sua própria voz rouca ecoava as mesmas palavras repetidamente.
“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Não saberia dizer quanto tempo já havia se passado desde que ela o aprisionara com tanto vigor e um fogo faminto nos olhos que o fazia temer ainda mais pelo próprio destino. Não temia mais a morte, havia possibilidades muito mais aterrorizantes e não se exigia muito esforço para compreender quais eram elas.
“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Tinha dificuldades em manter-se acordado. Sabia que não comia nada há alguns dias e, embora ela continuasse lhe fornecendo água, sentia os primeiros sinais do que acreditava ser desidratação. Os lábios estavam rachados como terra seca e, embora nos primeiros dias ele sentisse o gosto metálico do próprio sangue esvair-se de cada nova fissura, agora os cortes se tornaram mais profundos e absolutamente secos. Os braços haviam sido completamente mutilados com cortes verticais variados que ela fazia periodicamente com a precisão de um açougueiro cego.
“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Em todo o tempo que estivera ali amarrado à cama ela nunca fez menção de limpá-lo ou trocar a roupa de cama, de modo que o cheiro ácido de seus próprios dejetos o envolviam, uma mistura de enxofre e amônia que seria insuportável não fosse pelo fato de que não tinha escolha ou solução e já estava fraco demais para lutar. Perdera qualquer noção de tempo em razão da instabilidade a qual se encontrava. Não conseguia mais manter-se acordado e suas horas se arrastavam entre longos períodos de sono inquieto e longos períodos de medo e confusão.
“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Pela janela que ela insistia em manter aberta, os grunhidos se tornavam cada vez mais pronunciados, tornando-se sussurros carregados pelo vento até a nuca dele, arrepiando seus cabelos ruivos na base do pescoço como uma amante excitada. Ele sentia que cada grunhido que alcançava sua mente era um convite, eles sentiam o cheiro de sua morte se aproximando e pareciam convidá-lo a participar daquela orgia pútrida. Ele chorava constantemente, mas um choro seco de quem não possui mais líquido suficiente no organismo para desperdiçá-lo com as próprias emoções.
“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Nos primeiros sonhos perturbados que tivera, novos flashes dela invadiram sua mente, mas nenhum deles concreto o suficiente para unificar seu pensamento e tornar-se uma memória real. Não sabia discernir sua imaginação da realidade. A primeira lembrança de tocar os braços nus dela fora tão vívida que podia quase sentir o calor e a textura da pele pálida. Desde então, a memória se tornara distante e assumira uma incômoda tonalidade opaca e ele já não sabia definir se aquele toque fora um momento real perdido no passado ou um desejo reprimido que ele havia transformado em realidade em meio ao desespero que tomara seu ser.
“...Meu nome é Fernando. Ela me conhece do passado. Ela me odeia. Meu nome é Fernando...”
Ele perdeu-se novamente em seus sonhos doentios do passado que não conhecia. Revirava-se na cama imunda sentindo o cheiro da própria sujeira misturada com o odor infeccioso do pus que escorria das feridas abertas no braço. As juntas já não funcionavam mais direito, endurecidas pela falta de uso e qualquer movimento parecia levar horas para responder ao impulso elétrico inicial enviado pelo cérebro adormecido. Acordou quando a noite já havia caído lá fora. Sabia disso antes de abrir os olhos cansados em razão dos sons que ecoavam pelas ruas, mais calmos e menos incisivos. Aquelas criaturas se tornavam mais calmas quando a noite chegava e a temperatura caía, e ele não conseguia encontrar nenhuma razão lógica para isso. Sabia também, ainda de olhos fechados, que não estava sozinho. Entre a podridão de odores que invadiam suas narinas irritadas, sentiu o perfume cítrico que exalava dela, levemente doce e perigoso. Apesar de toda a decomposição que ocorria dentro daquele quarto e que subia pelas janelas trazidas pelo vento chuvoso, aquele delicioso perfume era o cheiro que mais o apavorava, que o fazia sentir os músculos contraírem rápida e involuntariamente. Imediatamente, começou a sussurrar para si mesmo no escuro.
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Dia Zero (Saga Zero #1)
HorrorNo meio de uma crise de saúde mundial, São Paulo é tomada por uma epidemia que faz com que os mortos levantem em busca de carne humana, isolando do mundo uma garota despreparada que se vê forçada a enfrentar uma nova realidade na solidão completa de...