Capítulo 16 - Dia 36

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O tamanho do grupo de sobreviventes a pegou de  surpresa.  Além  de  Marcelo,  Samanta,  André  e Leonardo,  ela  conheceu  todos  ou  outros  naquele mesmo dia à tarde. Duas meninas, Tatiana e Aline, ambas com trinta e poucos anos, moradoras do prédio que ela sequer conhecia, eram garotas de programa antes do caos se instalar. Ricardo era diretor da empresa da mãe, um  carioca mimado de vinte e poucos anos que estava em  São Paulo para uma reunião de negócios. João, o marido de Samanta, um homem  grande  e  muito  simpático  na  casa  dos cinquenta anos, era um sobrevivente do câncer e também viera à cidade a negócios. Mia o adorou logo de cara e ele demonstrou com ela um carinho também quase  paternal imediatamente. Dois irmãos  loiros, também  moradores  do  prédio,  ela  reconhecia  de eventuais encontros nos corredores e cumprimentos sem  significado  no  elevador.  Eram  estudantes  de medicina,  os  dois,  com  apenas  alguns  anos  de diferença entre eles. Um senhor argentino carrancudo, levemente careca e com uma barriga proeminente, era engenheiro elétrico e passava mais tempo no subsolo trabalhando nos geradores do prédio do que de fato socializando com seus companheiros.

Foram muitos rostos e nomes e cumprimentos para  guardar  na  memória.  Todos  sobreviventes, abandonados.  Todos  ali  haviam  perdido  alguém querido e estimado. Famílias despedaçadas. Todos unidos por suas próprias tragédias pessoais. E, no centro de tudo isso, Mia. Havia duas crianças por ali além dela, dois meninos cujos pais haviam sucumbido aos terrores da epidemia. Eram gêmeos, ruivos, seus rostos cobertos de sardas. Samanta havia socorrido os dois de um carro abandonado enquanto a mãe, já transformada em um daquelas criaturas, se debatia no volante tentando escapar do cinto de segurança para devorar   os   filhos   desacordados   que   jaziam ensanguentados  no  banco  traseiro.  A  porta  do passageiro escancarada indicava que alguém havia saído do carro após o acidente, provavelmente o pai, mas os meninos se recusavam a falar sobre o assunto. Independente de qualquer coisa os meninos tornaram-se  o  elo  entre  todos  os  sobreviventes. Tiveram sobre aquele grupo o mesmo efeito que Mia tivera sobre ela. Uma criança tem este efeito sobre adultos céticos em situações de emergência. O desejo de sobrevivência da espécie, intrínseco ao DNA do ser humano,  torna  todo  o  processo  essencialmente instintivo. Os olhos inocentes transformam pessoas comuns em guerreiros. Assim como Samanta, que nunca tivera filhos próprios, arriscara a própria vida para  resgatá-los  do  carro,  o  resto  do  grupo  os transformou no símbolo de sua resistência. Embora o pequeno universo infantil tenha levado algumas horas para trocarem suas primeiras palavras, os meninos logo assumiram a proteção de Mia, menor e mais frágil do que qualquer um deles. A dinâmica miniatura dos três  trazia  sorrisos  a  todos  que  paravam  alguns instantes  para  observá-los.  Criaram  sua  pequena sociedade e ela estava mais do que satisfeita em saber que sua pequena filha adotiva se tornara o centro deste  trio.  Sabia  que,  ao  lado  deles,  ela  estaria protegida,  e  simplesmente  soube  que  fizeram  a decisão certa em se unir a um grupo maior.

Naquela   noite,   lhes   foi   oferecido   um apartamento quase idêntico àquele que ela ocupara nos últimos três anos, exceto pelas estantes de livros, discos e DVDs, uma impressionante coleção que ela e o marido levaram anos para juntar. A ausência dos objetos  pessoais  tornava  o  apartamento  enorme comparado ao seu. Deixou Mia brincando com os meninos  no  apartamento  de  Samanta,  cuja  porta parecia estar sempre aberta, e levou suas malas até o apartamento  que  lhe  fora  designado.  Arrumou  as poucas  roupas  no  armário  do  quarto.  Tão  pouco restara de todas as suas posses que pareciam tão importantes apenas semanas atrás. Percebeu, então, que ninguém nunca mais telefonaria do banco para reclamar da falta de movimentação da conta, ou de sua operadora  de  celular  para  reclamar  o  atraso  no pagamento das contas. Sorriu com o pensamento que se formara em sua mente, e logo percebeu o quão mórbido tudo aquilo realmente era. Suas dívidas não haviam sido milagrosamente perdoadas! Na realidade, simplesmente não existia mais ninguém para discar o número de seu telefone do outro lado da linha.

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now