O tamanho do grupo de sobreviventes a pegou de surpresa. Além de Marcelo, Samanta, André e Leonardo, ela conheceu todos ou outros naquele mesmo dia à tarde. Duas meninas, Tatiana e Aline, ambas com trinta e poucos anos, moradoras do prédio que ela sequer conhecia, eram garotas de programa antes do caos se instalar. Ricardo era diretor da empresa da mãe, um carioca mimado de vinte e poucos anos que estava em São Paulo para uma reunião de negócios. João, o marido de Samanta, um homem grande e muito simpático na casa dos cinquenta anos, era um sobrevivente do câncer e também viera à cidade a negócios. Mia o adorou logo de cara e ele demonstrou com ela um carinho também quase paternal imediatamente. Dois irmãos loiros, também moradores do prédio, ela reconhecia de eventuais encontros nos corredores e cumprimentos sem significado no elevador. Eram estudantes de medicina, os dois, com apenas alguns anos de diferença entre eles. Um senhor argentino carrancudo, levemente careca e com uma barriga proeminente, era engenheiro elétrico e passava mais tempo no subsolo trabalhando nos geradores do prédio do que de fato socializando com seus companheiros.
Foram muitos rostos e nomes e cumprimentos para guardar na memória. Todos sobreviventes, abandonados. Todos ali haviam perdido alguém querido e estimado. Famílias despedaçadas. Todos unidos por suas próprias tragédias pessoais. E, no centro de tudo isso, Mia. Havia duas crianças por ali além dela, dois meninos cujos pais haviam sucumbido aos terrores da epidemia. Eram gêmeos, ruivos, seus rostos cobertos de sardas. Samanta havia socorrido os dois de um carro abandonado enquanto a mãe, já transformada em um daquelas criaturas, se debatia no volante tentando escapar do cinto de segurança para devorar os filhos desacordados que jaziam ensanguentados no banco traseiro. A porta do passageiro escancarada indicava que alguém havia saído do carro após o acidente, provavelmente o pai, mas os meninos se recusavam a falar sobre o assunto. Independente de qualquer coisa os meninos tornaram-se o elo entre todos os sobreviventes. Tiveram sobre aquele grupo o mesmo efeito que Mia tivera sobre ela. Uma criança tem este efeito sobre adultos céticos em situações de emergência. O desejo de sobrevivência da espécie, intrínseco ao DNA do ser humano, torna todo o processo essencialmente instintivo. Os olhos inocentes transformam pessoas comuns em guerreiros. Assim como Samanta, que nunca tivera filhos próprios, arriscara a própria vida para resgatá-los do carro, o resto do grupo os transformou no símbolo de sua resistência. Embora o pequeno universo infantil tenha levado algumas horas para trocarem suas primeiras palavras, os meninos logo assumiram a proteção de Mia, menor e mais frágil do que qualquer um deles. A dinâmica miniatura dos três trazia sorrisos a todos que paravam alguns instantes para observá-los. Criaram sua pequena sociedade e ela estava mais do que satisfeita em saber que sua pequena filha adotiva se tornara o centro deste trio. Sabia que, ao lado deles, ela estaria protegida, e simplesmente soube que fizeram a decisão certa em se unir a um grupo maior.
Naquela noite, lhes foi oferecido um apartamento quase idêntico àquele que ela ocupara nos últimos três anos, exceto pelas estantes de livros, discos e DVDs, uma impressionante coleção que ela e o marido levaram anos para juntar. A ausência dos objetos pessoais tornava o apartamento enorme comparado ao seu. Deixou Mia brincando com os meninos no apartamento de Samanta, cuja porta parecia estar sempre aberta, e levou suas malas até o apartamento que lhe fora designado. Arrumou as poucas roupas no armário do quarto. Tão pouco restara de todas as suas posses que pareciam tão importantes apenas semanas atrás. Percebeu, então, que ninguém nunca mais telefonaria do banco para reclamar da falta de movimentação da conta, ou de sua operadora de celular para reclamar o atraso no pagamento das contas. Sorriu com o pensamento que se formara em sua mente, e logo percebeu o quão mórbido tudo aquilo realmente era. Suas dívidas não haviam sido milagrosamente perdoadas! Na realidade, simplesmente não existia mais ninguém para discar o número de seu telefone do outro lado da linha.
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Dia Zero (Saga Zero #1)
HorrorNo meio de uma crise de saúde mundial, São Paulo é tomada por uma epidemia que faz com que os mortos levantem em busca de carne humana, isolando do mundo uma garota despreparada que se vê forçada a enfrentar uma nova realidade na solidão completa de...