Capítulo 15 - Dia 154

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Ao  ultimato  dela,  seguiu-se  um  silêncio ensurdecedor.  Ele  simplesmente  não  sabia  o  que responder   àqueles   olhos   escuros   enormes, acinzentados  e  obsessivos.  Ela  permaneceu  em silêncio encarando-o, sem ansiedade ou desejo. Não havia   súplica   em   sua   voz.   Ela   não   estava desesperadamente pedindo que ele a acompanhasse. Na verdade, ele sentiu emanando dela reles desprezo pela decisão dele. Ela fora até seu quarto para notificá-lo de sua partida e estender-lhe a cortesia de convidá-lo a acompanhá-la. Pela postura dela, ele sentiu que o convite foi apenas uma formalidade.

Ele levou uma das mãos aos cabelos, úmidos do suor providenciado pelos sonhos da noite anterior, enquanto a outra remexia na foto dobrada em seu bolso.

“É claro que eu vou com você. Está achando que vou permitir que você se jogue sozinha no meio dessa guerra lá fora?”

“Eu não teria a mesma preocupação no seu lugar.”

“O que diabos você quer dizer com isso?”

“Minhas chances são as mesmas aqui ou na estrada.  Não  faz  diferença.  Não  posso  viver eternamente  enclausurada  aqui.  A  comida  está acabando, as lojas do bairro estão com seus estoques se  esgotando  ou  simplesmente  podres.  Você  não percebe?  Não  faz  diferença. Nosso  tempo  está  se esgotando não importa o que a gente faça.”

“Isso não é verdade. Estaremos muito mais expostos lá fora do que aqui dentro.”

“E quando a comida acabar vamos fazer o que exatamente? Comer um ao outro? Olhe o seu reflexo no espelho. Estamos perdendo gordura e carne sem ao menos tentarmos. Logo restará apenas pele e ossos. Estamos ficando quase igual a eles.”

“Quando foi que você perdeu qualquer noção de esperança?”

“Esperança? Você só pode estar brincando! Quantas vezes preciso mandar você olhar ao redor? Olhe pela janela! O mundo se tornou restos, ruínas de concreto! Não há esperança aqui! Se é isso que você está  procurando,  pode-se  considerar  satisfeito! Acabou! Não restou mais nada!”

Ela já estava em pé, encarando-o com um olhar sedento, sanguinário. O braço em riste direcionado à janela terminava em um único dedo magro de ossos saltados  sob  a  pele  e  uma  unha  impecavelmente pintada de preto metalizado. Ele sabia que ela tinha razão. Sabia disso há semanas. Soube disso a cada viagem feita em busca de suprimentos. Ele percebeu que estavam se esgotando. Ele sabe que a única coisa que recheava o corpo dela naquele momento eram os músculos que estava adquirindo nas semanas em que passou treinando, lutando silenciosamente contra a exaustão e a fome. Percebeu que ela fechava os olhos com  força  em  uma  tentativa  vã  de  esconder  as enxaquecas provocadas pelo excesso de esforço e falta de alimentos. Não ingeriam proteínas há semanas.

Batalhou internamente entre o desejo de manter a discussão acalorada na esperança de trazer e volta a versão de Christina que ainda não havia desistido de lutar e simplesmente admitir que ela tivesse razão.

Deixou que seu segundo instinto vencesse ao sentir o dedo espetar no canto da foto em seu bolso. Aquela menininha da foto estava cheia de esperança, mas isso não  significa  que  ainda  seja  aquela  criança  de bochechas rosadas pela qual ele foi hipnotizado. Na melhor das hipóteses, ela se tornara apenas uma sombra de si mesma, refugiada e faminta, assustada.

Mais provável que isso, ele sabia, ela que ela se tornara apenas mais um sistema orgânico faminto vagando as ruas sedenta por carne humana.

“Vou arrumar minhas coisas.”

“Não junte muita tralha. Precisamos levar o mínimo possível. Duas trocas de roupa, no máximo!”

“Pode deixar.”

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now