Capítulo 6 - Dia 18

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Ajoelhada no carpete na sala, ela cobriu o rosto com as mãos delicadas embora as lágrimas já estivessem secas. O mundo não existia mais, tudo se resumia a ela e o silêncio que a envolvia. O vento chiava pela janela, batendo as cortinas grossas com força contra a estrutura metálica das janelas azuladas.

Sentiu a pele arrepiar com o ar frio que soprava em cima dela, mas sequer fez menção de se aquecer. Imaginava que a morte seria exatamente assim: o silêncio, o frio e o nada. Desejou a morte com todas as suas forças, o que não significava muito naquele momento específico.

Quando finalmente conseguiu erguer o corpo frágil, caminhou até a mesa e apanhou a embalagem dos comprimidos para dor que restaram e despejou todo o conteúdo sobre a mesa. Cinco comprimidos. Não seriam suficientes.

“Merda!”

Seus olhos passearam impacientes ao seu redor buscando outra solução igualmente eficaz e indolor, mas não encontrou nada. Pousou o olhar finalmente nos equipamentos que recebera do pai. A pistola sobre a mesa brilhava refletindo o resquício de Sol que insistia em invadir o seu pequeno universo. Ela apanhou a pistola e a pequena sacola de balas que seu pai lhe deixara. Colocando apenas uma no tambor, girou-o e enfiou o cano na boca, soluçando como nunca. O dedo pressionou o gatilho mas não conseguiu chegar até o final. Deixou o braço cair inerte ao lado do corpo. Não tinha coragem para isso. A forma mais rápida que encontrou de acabar com toda a dor era simplesmente se deixar definhar, deixar que o tempo fizesse seu trabalho. Soltou a pistola no chão e enfiou os cinco últimos comprimidos na boca, mastigando-os como pequenos pedaços de giz e deixando aquela massa homogênea amargar sua boca antes de engolir e se jogar na cama, conformada, esperando que a morte a carregasse para longe daquele lugar infernal.

Naquela noite, a morte não veio.  Mas começaram os sonhos.

Ela acordou com o corpo coberto de suor frio e a respiração ofegante. A última vez que tivera um pesadelo tão intenso fora 19 anos antes. O pai a havia deixado ficar acordada até tarde, escondida da mãe, ara assistir algum filme de terror Trash da década de80. Naquela noite ela não consegui pregar os olhos, isso se repetiu a semana toda, mas ela não queria contar a ninguém pois temeu que o pai não a convidasse mais para uma sessão noturna. Quando os sonhos finalmente se tornaram assustadores demais ela confessou ao pai e ele, ao invés de proibir as sessões aterrorizantes como ela tanto temia, lhe ensinou um truque mágico que faria todos os sonhos ruins dela desaparecerem. O pai mandou que fechasse os olhos e imaginasse um lindo triângulo de luz colorida. Enquanto isso, ele desenhos a forma do triângulo sobre o peito dela com a ponta dos dedos sete vezes.

“Pronto, querida! Sempre que você tiver um sonho ruim faça isso e eles irão desaparecer!”

Ela nunca mais teve pesadelos e, embora tenha entendido alguns anos depois que tudo foi uma grande jogada psicológica do pai com sua imaginação infantil, ela sempre gostou de acreditar que o pai havia destruído os pesadelos dela quando tinha apenas sete anos. Pelo menos até agora. A provável morte dele havia destruído toda a mágica do mundo.

Os pesadelos infantis tinham forma, eram monstros tirados do filme que assistira. Desta vez era diferente. Não sabia definir o que a aterrorizava. Ao abrir os olhos, tudo o que era capaz de lembrar eram formas lodosas que escancaravam bocarras infinitas em sua direção, sempre prontas para devorá-la sem piedade e, a cada boca aberta, uma nova criatura surgia de dentro da anterior, em uma infinita perseguição.

Ainda sentada na cama, a respiração cedendo aos poucos e transformando-se em soluços, ela fechou os olhos, imaginou o triângulo colorido e desenhou-o no peito com a ponta dos dedos sete vezes. Lentamente, sentiu o desespero deixar seu corpo e a respiração voltar ao normal.

Quando conseguiu se acalmar, foi até o computador e verificou novamente sua caixa de e-mail.

Sem noticias do marido. Sentiu na garganta o gosto amargo da certeza. Ele nunca havia demorado tanto tempo para lhe escrever, algo errado havia acontecido com ele. Na parede atrás do computador, um mural de cortiça antigo transbordava com fotos e lembranças do casal.  Haviam começado a montá-lo como uma brincadeira durante um natal que parecia ter acontecido décadas atrás. Com cuidado, ela removeu o quadro da parede e retirou todas as fotos, entradas de cinema e ingressos de shows.  Guardou todo o conteúdo em uma caixa no armário do quarto e jogou no lixo a estrutura do quadro em si.  Continuou removendo das paredes todos os quadros e pôsteres.

Não aguentaria passar dias em isolamento olhando para os olhos brilhantes de pessoas tão felizes que já não existiam mais.

Quando todas as paredes estavam nuas exceto pelo papel de parede amarelo manchado pelo Sol, ela caminhou até o móvel em frente à janela, sentou-se sobre ele abraçando os joelhos e encostou a cabeça no vidro gelado, que estremeceu o corpo ainda dolorido e marcado. O dia se esvaía e se tornava noite. Naqueles minutos em que o céu assumiu um tom rosado e os últimos sinais de claridade desapareceram entre os arranha céus da metrópole, ela encontrou conforto. Por alguns instantes, São Paulo a abraçou e ela não estava mais sozinha.  Algumas poucas lágrimas escorreram dos olhos fechados, mas ela controlou o desejo de soluçar como criança. Sabia que o pai estava certo. Ela precisaria praticar o desapego e se desligar das emoções humanas.

Sons guturais chegavam a seus ouvidos de todos os lados. A cabeça ainda alterada pelo excesso de remédios não lhe permitia distinguir a direção desta sinfonia terrível mas, pela janela, conseguia enxergar as pessoas nas ruas agindo de forma estranha, caminhando sem rumo em passos arrastados. O cheiro que sentia também lhe embrulhava o estômago. No primeiro momento achou que fossem suas próprias feridas supurando pus que exalavam aquele odor ocre, mas uma golfada de vento vinda das ruas a fez perceber que a podridão daquele perfume fétido vinha da cidade e estava se impregnando em tudo. Fechou suas janelas, passou desodorante spray por todo o apartamento e ligou a televisão, mudando de canal incessantemente. Tudo que conseguiu obter foram sinais de estática.

Tentou ligar o rádio, mas não havia nenhum tipo de transmissão, nem mesmo sinais de emergência como os que via nos filmes. Riu-se, lembrando das histórias de epidemia que leu em livros ou assistiu na televisão em que o grupo de protagonistas encontra uma gravação no rádio mandando-os seguir para as maiores cidades em busca de alojamentos do exército apenas para descobrir que as cidades grandes eram sempre as mais afetadas pela tal doença. Pelo menos este problema ela não tinha, seu destino já estava morbidamente definido.  Afinal, já estava bem o coração da maior cidade do país.

A internet ainda funcionava, mas os sites de noticia já não estavam sendo atualizados havia algumas horas. As redes sociais ainda tinham algum movimento, atualizações de pessoas procurando amigos e parentes ou buscando algum tipo de contato mas, pelo que pôde observar, apenas um ou outro recebiam algum tipo de resposta. Outros, sozinhos como ela, procuravam companheiros para fugirem em grupos. Queriam sair de São Paulo e buscar proteção no interior do Estado. Acima de tudo, as mensagens mais comuns eram fanaticamente religiosas, anúncios do fim do mundo, tragédias anunciadas por um Deus no qual a maioria sequer acreditava apenas dias antes.

Ela nem se deu ao trabalho de responder. A maioria dessas pessoas provavelmente estaria morta antes de conseguirem cruzar uma das muitas fronteiras da cidade nas estradas que deviam estar entupidas de carros parados e aguardando o massacre, como animais no matadouro apenas aguardando o golpe final. Será que todos os filmes que foram feitos não ensinaram nada a ninguém?  Decidiu que tentaria contato com o marido via internet todos os dias até conseguir uma resposta, uma evidência de que estava morto ou o sinal desaparecesse de uma vez por todas.

Ainda não estava pronta para desistir dele.

Dia Zero (Saga Zero #1)Kde žijí příběhy. Začni objevovat