Capítulo 1 - Dia 108

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Assim que sentiu o calor do Sol em seu rosto, abriu os olhos e saiu da cama já alerta. Conferiu seu estoque de água potável e mantimentos e concluiu que era hora de fazer uma nova visita ao mercado. Vestiu-se completamente de preto, cobrindo o corpo quase inteiro, exceto pelo rosto e pelas mãos, e calçou suas botas mais pesadas, inglesas, importadas. Amarrou os cabelos bem apertados para evitar distrações. O único sinal de cor que se apresentava no semblante escuro era seu velho cinto favorito. O tom mostarda já estava desbotando, mas as tachas de metal vazadas permitiam que ela pendurasse mosquetões em toda a sua superfície, facilitando o carregamento de peso em suas buscas por comida.

Pela janela, conferiu que seus escudeiros continuavam em suas posições usuais, próximos ao hall de entrada principal no qual eventualmente algum perdido se aventurava.  Ela costumava escutar as criaturas devorando suas vitimas. No inicio, os berros guturais que entravam pela janela do terceiro andar faziam com que perdesse o sono por dias, mas agora ela estava acostumava e agradecida pelos encontros ocasionais que distraiam os dois sentinelas em relação a sua presença apenas alguns metros acima do chão.

Carregou a velha pistola com as poucas balas que possuía e prendeu-a ao cinto no lado oposto à velha faca de caça de seu pai. Sentada sobre o vaso, apoiou o braço direito sobre a pia e arregaçou a manga da malha grossa. Amarrou um torniquete improvisado um pouco acima do cotovelo e, com uma navalha levemente enferrujada, abriu a própria carne e permitiu que uma fina linha de sangue escorresse sobre o braço. Utilizou o liquido vermelho para umedecer uma de suas inúmeras estopas em estoque e deixou-a na pia enquanto estancava o sangramento e cobria o ferimento com um curativo tosco. Ainda não havia adquirido destreza suficiente com a mão esquerda para fazer um trabalho impecável, mas o outro braço ainda não havia cicatrizado completamente e não queria arriscar algum ferimento mais sério mutilando o mesmo braço todas às vezes.  Com o braço remendado, cobriu o restante do corpo com um pesado casaco de couro preto que pertencia ao marido, olhou o relógio de pulso que começava a falhar, arremessou a estopa embebida  no  sangue  recém-extraído pela janela e saiu correndo pelo corredor ate as escadas.

Tinha aproximadamente quatro minutos para alcançar o muro nos fundos do quintal do prédio antes que as criaturas se dessem conta de que estavam perseguindo apenas um monte de tecido embolado. Correu silenciosamente sem olhar para trás e pulou o muro que a levava ao estacionamento do pequeno supermercado de bairro no qual havia construído uma discreta entrada clandestina.

As comidas enlatadas já estavam se tornando escassas e os congelados que ela não havia estocado no freezer o apartamento no inicio do caos já estavam esverdeados, lembrando-a da carne apodrecida que pendia nos corpos das criaturas que haviam dominado a cidade. Eram hora de se aventurar alguns quarteirões a mais, no supermercado maior que existia ali perto. Separou algumas frutas em conserva, grãos variados e garrafas de água potável, mas os carboidratos estavam em falta e era preciso muita energia para lidar com a nova ordem mundial que havia se instalado.  Caminhou até o corredor de produtos industrializados, separando alguns pacotes de salgadinho a base de batata e milho e foi nesse momento que o encontrou, semiconsciente e jogado no chão, descansando as costas largas contra as prateleiras. Ela o observou em silencio, abraçado aos próprios joelhos, completamente abandonado pelo mundo. Sem hesitar, em um único movimento fluido, levou a faca de seu pai ao pescoço dele, exigindo respostas:

“Você já esta contaminado?”

Ele levantou os olhos confusos encarando-a em silêncio e ela notou pela primeira vez o reflexo avermelhado dos cabelos dele. Sem obter resposta alguma, ela aumentou a pressão da faca na garganta dele:

“Você tem três segundos para responder a minha pergunta até eu presumir que você e um deles.”

“A... A... Água...”

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now