Capítulo 5 - dia 110

23 3 0
                                    

Claro que as vezes ela se sentia ridícula lendo livros  de  terror  com  a  vida  se  transformando rapidamente em uma historia muito mais apavorante do que ela poderia um dia ter imaginado, mas a verdade era que, independente de qualquer coisa, as páginas  amareladas  sempre  lhe  ofereciam  uma sensação de conforto, uma gentil fuga da sua própria realidade. E elas lhe faziam sentir próxima ao pai.

Dentro de sua mente, ela nunca encontraria o perdão necessário pelo que acontecera, e os livros que herdara dele ainda na adolescência eram a única coisa que ainda o mantinha vivo dentro dela.

Com os fones cobrindo as orelhas enquanto uma velha banda de Rock Progressivo entoava canções sobre opressão e isolamento no último volume para dentro dela, nem percebeu o entardecer pela janela. Rolou na cama, olhou para as pás estáticas do ventilador branco com a nostalgia batendo no peito, respirou fundos sete vezes e se levantou. Precisava afiar sua faca e trocar o curativo do braço. Ligou o chuveiro e passou o trinco na porta. Abriu a janela para deixar o vapor escapar e o vento chuvoso daquele final de tarde entrar.  Lavou os cabelos lentamente, deixou a água quente escorrer pelas costas tatuadas e lavou o corpo sem pressa, se dedicando especialmente ao braço direito, cujo ferimento ainda não havia curado completamente. Por

Um breve instante de tranquilidade, se esqueceu de que não estava mais sozinha no mundo e que os sons do prédio não eram apenas os mortos vagando sem rumo que eventualmente encontravam o caminho até o hall de entrada. Escutou passos do lado de fora do banheiro e, sem desligar a água, saiu do chuveiro e se enrolou na toalha, fechando a porta do Box de vidro com cuidado para não fazer nenhum barulho suspeito.

Colou o ouvido contra a porta, esperando escutar os típicos grunhidos famintos das criaturas, mas os passos que eram dados sobre seu carpete eram firmes e direcionados, não arrastados. Só então se lembrou de que tinha um companheiro claramente inconveniente.

Desejou tê-lo despejado quando teve a chance. Enrolou os cabelos na única toalha ainda felpuda que restara, um tom esverdeado que ela detestava, mas o marido havia escolhido com tanto carinho que ela nunca teve coragem de se desfazer dela. Olhou o próprio corpo no espelho, com cuidado. Não havia mais nenhuma marca que denunciasse o que havia sido feito há ela semanas antes (já não sabia mais dizer apuradamente quanto tempo havia se passado) exceto pela cicatriz brilhante na face. Lembrou-se de ter planejado se esconder das pessoas que amava para que ninguém a visse assim e percebeu que seu desejo havia se realizado e, provavelmente, essa era a razão de ela estar viva até agora.

Cobriu  o  braço  direito  com  uma  camada espessa de hidratante e desligou afinal o chuveiro, já sem se preocupar com o barulho. Tirou o excesso de água dos cabelos com a toalha e secou o corpo. Viciada pelo habito de ter compartilhado quarto e banheiro com o irmão menor durante muitos anos, tinha o costume de levar suas roupas consigo para o banheiro na hora do banho. Vestiu-se sem pressa, uma calça jeans surrada com a costura já desgastada e falhando no lado interno das coxas, nos joelhos e na barra, acompanhada de uma regata preta de lycra com decote de nadador nas costas, como quase todas as suas blusas. Separou embaixo da pia as roupas mais sujas que não poderiam ser reutilizadas. Dobrou as outras e as carregou de volta para o armário. Ele estava sentando no sofá, uma expressão encabulada de quem sabe que invadiu um momento íntimo alheio. Ela ainda ia ter que se acostumar com a presença de outro ser humano ali. Ele também havia se lavado e trocado a camiseta por uma malha fina de linho. A calça jeans continuava a mesma, ela notou pela mancha escura no joelho esquerdo, afinal tinha sido responsável por ela.

“Por um momento esqueci de você enquanto estava no banho. Quase me matou de susto quando escutei seus passos.”

“Me desculpe. Eu deixei um recado em cima da mesa, achei que tivesse visto.”

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now