Ele passou horas debaixo do chuveiro, aproveitando cada gota de água quente que cobria seu corpo. Não tinha ideia de quando ele teria essa chance novamente. Jogou a cabeça para trás, sentindo os filetes de água desenhando trilhas em seu couro cabeludo, movendo mechas de seu cabelo avermelhado de um lado para o outro. O cheiro do sabonete era doce, e ele se permitiu apreciá-lo enquanto ensaboava o corpo inteiro repetidas vezes.
Sentiu a textura da espuma que dissolvia sobre a pele. Sabia que havia uma enorme possibilidade de nunca mais sentir esse prazer leviano.
Enrolado na toalha, permaneceu no banheiro apreciando o vapor quente que fazia o azulejo branco das paredes transpirarem. Olhou-se no espelho e o reflexo que encontrou foi de um homem magro demais para a sua altura. De repente, considerou pela primeira vez o risco de inanição que corriam além do problema da peste.
Pela primeira vez compreendeu que sua sentença estava definida independente de sua decisão de ficar ou partir. Confinado àquele hotel abandonado, sofreria uma morte lenta pela falta de comida, embora não tivesse que se preocupar com desidratação. Água não lhe faltaria, mas isso apenas tornaria o processo mais longo. Na estrada, os riscos se multiplicavam. Teriam alimento pelas próximas semanas, ele sabia disso, mas eventualmente teriam de refazer o estoque e não podia prever o que encontrariam ou deixariam de encontrar. Além disso, estaria no domínio deles, das criaturas horrendas, mortíferas e já decompostas que vagavam sedentas pela sua carne.
Para onde estavam correndo? Será que algum dia chegariam a algum lugar ou permaneceriam sempre fugindo, saltando como nômades de um lugar para o outro, apenas atrasando o inevitável? Cada músculo de seu corpo suplicava para permanecer no conforto do hotel, mas ele não podia abandoná-la. Ela salvara sua vida ao tirá-lo, ainda confuso, daquele supermercado, e ele precisava retribuir.
Vestiu uma calça jeans escura, de tecido grosso. Cobriu o torso com uma regata preta e, sobre ela, uma malha branca grossa, para protegê-lo do frio. Colocou as meias, mas deixou o tênis e o casaco de motoqueiro ao lado de sua mochila, pronto para partir no dia seguinte. Colocou no bolso a foto que o assombrava e fascinava simultaneamente e caminhou silenciosamente pelo corredor até o apartamento dela. Deu duas leves batidas na porta e entrou.
*** *** ***
Ela deixou a água quente do chuveiro correr enquanto preparava tudo que precisava para fazer o jantar. Quando finalmente se despiu, o vapor quente já começava a escapar pela porta e embaçar as janelas fechadas da sala. Acendeu um cigarro antes de entrar no chuveiro, abriu a janela e ficou apoiada no batente, deixando que a água quente lhe tirasse todos os nós que incomodavam os músculos das costas, a fumaça do cigarro se misturando com o vapor da água.
Jogou a bituca pela janela, desejando que a mesma acertasse uma das criaturas bem nos olhos, fechou o vidro e deixou-se ser tomada pelo calor da água. Sentiu os pelos arrepiarem em razão do contraste entre a temperatura da água e a última golfada de vento gelado que escapara antes da janela ser fechada.
Permaneceu com os olhos fechados, massageando os cabelos longos com um Xampu de luxo que nunca tivera dinheiro para comprar antigamente e se permitindo ser inundada com a lembrança de cada pessoa amada que perdera. Primeiro foram lembranças das mãos enrugadas e frias da avó, os olhos azuis e calorosos do padrinho, as brigas sem sentido com a mãe, as manias irritantes do irmão mais novo, a melhor amiga, um amigo da faculdade que tinha mania de deixar aberta a porta do banheiro, a última visita do pai através da porta, o primeiro encontro com o menino de 19 anos que viria a ser seu marido. De repente, foi tomada por lembranças dele, e sentiu o joelho fraquejar.
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Dia Zero (Saga Zero #1)
HorrorNo meio de uma crise de saúde mundial, São Paulo é tomada por uma epidemia que faz com que os mortos levantem em busca de carne humana, isolando do mundo uma garota despreparada que se vê forçada a enfrentar uma nova realidade na solidão completa de...