Capítulo 17 - Dia 155

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Ele  passou  horas  debaixo  do  chuveiro, aproveitando cada gota de água quente que cobria seu corpo. Não tinha ideia de quando ele teria essa chance novamente. Jogou a cabeça para trás, sentindo os filetes  de  água  desenhando  trilhas  em  seu  couro cabeludo,   movendo   mechas   de   seu   cabelo avermelhado de um lado para o outro. O cheiro do sabonete  era  doce,  e  ele  se  permitiu  apreciá-lo enquanto ensaboava o corpo inteiro repetidas vezes.

Sentiu a textura da espuma que dissolvia sobre a pele. Sabia que havia uma enorme possibilidade de nunca mais sentir esse prazer leviano.

Enrolado na toalha, permaneceu no banheiro apreciando o vapor quente que fazia o azulejo branco das paredes transpirarem. Olhou-se no espelho e o reflexo que encontrou foi de um homem magro demais para  a  sua  altura.  De  repente,  considerou  pela primeira vez o risco de inanição que corriam além do problema da peste.

Pela  primeira  vez  compreendeu  que  sua sentença estava definida independente de sua decisão de ficar ou partir. Confinado àquele hotel abandonado, sofreria uma morte lenta pela falta de comida, embora não tivesse que se preocupar com desidratação. Água não lhe faltaria, mas isso apenas tornaria o processo mais longo. Na estrada, os riscos se multiplicavam. Teriam alimento pelas próximas semanas, ele sabia disso, mas eventualmente teriam de refazer o estoque e não podia prever o que encontrariam ou deixariam de encontrar. Além disso, estaria no domínio deles, das criaturas horrendas, mortíferas e já decompostas que vagavam sedentas pela sua carne.

Para onde estavam correndo? Será que algum dia  chegariam  a  algum  lugar  ou  permaneceriam sempre fugindo, saltando como nômades de um lugar para o outro, apenas atrasando o inevitável? Cada músculo de seu corpo suplicava para permanecer no conforto do hotel, mas ele não podia abandoná-la. Ela salvara sua vida ao tirá-lo, ainda confuso, daquele supermercado, e ele precisava retribuir.

Vestiu  uma  calça  jeans  escura,  de  tecido grosso. Cobriu o torso com uma regata preta e, sobre ela, uma malha branca grossa, para protegê-lo do frio. Colocou as meias, mas deixou o tênis e o casaco de motoqueiro ao lado de sua mochila, pronto para partir no  dia  seguinte.  Colocou  no  bolso  a  foto  que  o assombrava e fascinava simultaneamente e caminhou silenciosamente pelo corredor até o apartamento dela. Deu duas leves batidas na porta e entrou.

***          ***          ***

Ela deixou a água quente do chuveiro correr enquanto preparava tudo que precisava para fazer o jantar. Quando finalmente se despiu, o vapor quente já começava a escapar pela porta e embaçar as janelas fechadas da sala. Acendeu um cigarro antes de entrar no chuveiro, abriu a janela e ficou apoiada no batente, deixando que a água quente lhe tirasse todos os nós que incomodavam os músculos das costas, a fumaça do cigarro se misturando com o vapor da água.

Jogou a bituca pela janela, desejando que a mesma acertasse uma das criaturas bem nos olhos, fechou o vidro e deixou-se ser tomada pelo calor da água.  Sentiu  os  pelos  arrepiarem  em  razão  do contraste entre a temperatura da água e a última golfada de vento gelado que escapara antes da janela ser fechada.

Permaneceu   com   os   olhos   fechados, massageando os cabelos longos com um Xampu de luxo  que  nunca  tivera  dinheiro  para  comprar antigamente e se permitindo ser inundada com a lembrança  de  cada  pessoa  amada  que  perdera. Primeiro foram lembranças das mãos enrugadas e frias da avó, os olhos azuis e calorosos do padrinho, as brigas sem sentido com a mãe, as manias irritantes do irmão  mais  novo,  a  melhor  amiga,  um  amigo  da faculdade que tinha mania de deixar aberta a porta do banheiro, a última visita do pai através da porta, o primeiro encontro com o menino de 19 anos que viria a ser  seu  marido.  De  repente,  foi  tomada  por lembranças dele, e sentiu o joelho fraquejar.

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now