Capítulo 2 - Dia 16

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Quando ela abriu os olhos e descobriu que ainda estava no sofá, sentiu o pescoço e o lado esquerdo do quadril extremamente doloridos. Não deve ter se mexido durante a noite. Quanto tempo havia dormido? Não saberia dizer. Mastigou mais dois comprimidos para dor e caminhou ate a geladeira. Puxou uma caixa de suco de laranja concentrado e deu um gole longo. Engasgou ao sentir uma dor inesperada na garganta seca. Ligou o chuveiro quente, despiu-se e removeu as ataduras manchadas de suor sem se olhar no espelho e deixou a água quente bater contra as costas doloridas. Passou muito tempo naquela posição, apoiando os braços machucados contra o beiral metálico da janela e apreciando um dos raros momentos de silencio na cidade de São Paulo.

Saiu do chuveiro e olhou o corpo nu no espelho. As manchas roxas haviam atingido seu auge e estavam assumindo uma coloração negra. Ela sabia que isso aconteceria antes de melhorar.  O rosto marcado ainda carregava os pontos em linha preta que formavam desenhos abstratos e macabros, e ela sentia os fios repuxando sua pele ao fazer caretas diante do espelho. Não podia sair de casa assim. Havia recebido férias do trabalho na noite em que tudo desmoronou, mas deveria retomar suas atividades naquela manhã.

Ligou o celular e enviou uma mensagem de texto para a chefe avisando que não conseguiria voltar ainda. Simples assim, não se justificou, não ofereceu maiores explicações. “Não posso voltar hoje ainda” foi tudo que conseguiu escrever. Enviou a mensagem, desligou o aparelho e tirou o telefone fixo do gancho. O mundo poderia acabar lá fora, mas ela não sairia do aconchegante refúgio de seu minúsculo apartamento.

Pensou em ligar para o marido, mas tinha certeza de que iria fraquejar ao ouvir a voz dele e se debulhar em lagrimas ao telefone, então ligou o computador e lhe enviou um e-mail descompromissado discutindo amenidades e fazendo mais perguntas sobre a gripe que ele havia contraído da ultima vez que se falaram do que falando sobre si.

A televisão ao fundo continuava ligada, mas ela ainda não tinha tido paciência para prestar atenção nas noticias transmitidas.  Desligou o aparelho, escolheu um livro de crônicas entre seus favoritos, aquele com a lombada mais marcada, deitou-se na cama apoiando o queixo nos travesseiros e leu, sem muito entusiasmo, até adormecer novamente. Acordou algumas horas depois e o relaxamento dos seus músculos era nítido. O remédio deve ter tido efeito enquanto ela descansava. Pela janela, percebeu que o dia já havia anoitecido. Sentiu o estomago urrar de fome e não conseguiu se lembrar de qual fora sua ultima refeição. Um pouco enjoada, separou algumas bolachas sem recheio e um copo alto de água com gelo, esparramando-se no sofá com o controle remoto em mãos.  Trocou os canais incessantemente, sem paciência para se comprometer com nenhuma programação por mais do que alguns minutos, mas a notícia de um surto gravíssimo de gripe na Espanha chamou-lhe a atenção. Aparentemente, um vírus ainda desconhecido estava assolando os hospitais europeus com marmanjos que não conseguiam sequer caminhar sem ajuda. Ainda não haviam sido registradas mortes consequentes desta infecção, mas sentiu o coração disparar de preocupação com o marido. Ele estava na Inglaterra, fora do continente, mas estava muito gripado quando se falaram e ela não conseguia evitar uma sensação de tragédia iminente.  Correu até o telefone, colocou-o de volta no gancho para obter linha e começou a discar sua chamada internacional com o coração prestes a arrebentar sua caixa torácico tamanho o seu desespero. Tentou digitar uma, duas, três vezes mas suas mãos tremiam de tal forma que sempre errava a ordem dos dígitos.  Desligou o telefone, respirou fundo, recuperando sua sanidade e tornou a discar. Desta vez, conseguiu discar na ordem certa mas, no quinto botão apertado, o sinal se tornou um bipe repetido. Sinal de ocupado. Não entendeu como seria possível sem que tenha digitado o numero completo e então pousou os olhos na pilha de correspondências ignoradas no canto da sala. Havia se esquecido de pagar a conta no mês passado e, com o tempo passado no hospital, este era o segundo mês sem pagamento.  A linha havia sido cortada para telefonemas externos.  Em um único movimento, arrancou o aparelho da parede e o arrebentou contra a pia de mármore da cozinha.

Voltou ao computador, abriu o e-mail e, ainda sem respostas do marido, enviou uma segunda mensagem com apenas três palavras: “MANDE NOTÍCIAS URGENTE”. Depois de enviar, se arrependeu da frieza e mandou uma segunda mensagem, ainda mais curta: “AMO VOCÊ”. Durante horas ficou sentada na cadeira da sala, a atenção variando entre os plantões do jornal e o botão de atualização do seu navegador.  Nenhum deles lhe ofereceu nenhum conforto. Decidiu ir atrás dele na Inglaterra. Tentou comprar passagens em diversos sites, mas todos os aeroportos estavam   fechados   para minimizar o impacto e a área de infecção deste surto de gripe, ainda sem nome. Sentiu o desespero fechar sua garganta e os pulmões fraquejarem. De repente, os músculos cansados começaram a repuxar de dor novamente. Ela mastigou quatro comprimidos para dor de uma só vez e sentiu o efeito atingindo-a mais rapidamente desta vez.

Com as extremidades do corpo amortecendo, tentou focar a atenção novamente no noticiário, mas estava entorpecida demais para conseguir compreender tudo o que estava sendo transmitindo. Eram informações demais, rápidas demais para o seu consciente frágil absorver em tão pouco tempo. Fez uma ultima tentativa vã de tentar concentrar sua atenção mas só conseguiu distinguir fragmentos de frases perdidas que transformaram seu estupor em tortura:

“Mortes confirmadas”.

 “Vírus mutável”.

“Igrejas repletas de doentes”.

“Aeroportos interditados”.

***          ***          ***

Abriu os olhos e sentiu a enxaqueca latejante que se instalara sob a têmpora esquerda. O corpo doía ainda, mas já estava acostumada com esses incômodos musculares. Teve que resistir à tentação de mastigar mais alguns comprimidos.   Levantou-se com dificuldade e sem ter ideia de quanto tempo havia dormido.  Em ondas vagarosas, as lembranças começaram a retornar para sua mente e, coberta por uma sensação aterrorizante de desespero repentino, levantou-se com pressa em direção ao computador e sentiu-se zonza, enjoada.  Superou os pequenos incômodos que a afligiam e apertou o botão de atualização do navegador de internet ansiosa.

Nenhuma resposta. Nada. Nenhuma palavra, sequer uma propaganda de vendas coletivas.  Olhou pela janela e encontrou as ruas praticamente vazias, exceto por algumas poucas almas que vagavam sem rumo na tarde chuvosa e cinzenta de outono. Desejou se entregar a angustia que a consumia, desejou deitar-se na cama em posição fetal e chorar uma prece silenciosa para que o mundo a engolisse.

Estava a um passo de sucumbir ao próprio desejo mórbido quando escutou as batidas violentas na porta de entrada. Surpresa com o próprio choque, ela olhou curiosa para o compensado de madeira clara que a separava da criatura forte e imponente que a chamava do outro lado, quase como se estivesse esperando que própria porta respondesse suas indagações quando escutou a voz masculina tão familiar que a embalou e protegeu-a de todos os seus temores em noites de pesadelos infantis:

“Querida? Querida? Querida, responda se estiver ai, é o papai!”

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now