Capítulo 12 - Dia 32

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Ela passou dias               considerando  as possibilidades. Por fim, decidiu que não abriria a porta mas falaria com o próximo ser humano saudável que batesse à porta. Não teria condições de cuidar da pequena Mia sozinha. A menina era inteligente, estava aprendendo a ler rapidamente e entendia a seriedade da situação, mas ainda era apenas uma criança e, como uma, era descuidada. Além disso, não deveria ter que lidar com as criaturas atrás das paredes com essa idade. Aliás, ninguém nunca deveria ter que lidar com algo tão incrivelmente contrário às regras mais básicas da natureza.

A primeira batida veio alguns dias depois da sua tomada de decisão. Estava sentada no sofá com um livro na mão enquanto acariciava a vasta cabeleira loira da filha que dormia em seu colo. O som de um punho se chocando levemente contra a porta despertou ambas de seus respectivos devaneios. Mia correu para seu lugarzinho embaixo da mesa e ela correu para a porta, espiando o visitante. Um homem de meia idade, grisalho mas muito bem apessoado encostava o ouvido na porta para captar algum sinal de movimento. Ela segurou a respiração e continuou a observá-lo.

Ele bateu de novo à porta. Três batidas, uma breve pausa, mais duas batidas. Respirando fundo, ela cerrou a mão em um punho e repetiu a sequencia dele levemente sem nunca tirar os olhos do vidrinho arredondado que funcionava como seus olhos para o mundo exterior.  Observando com cuidado, tentou analisar as reações dele.

Primeiro, ele descolou a orelha da porta e a encarou com olhos arregalados e a boca semiaberta. Depois, começou a se afastar da porta, recuando lentamente até o hall do elevador. Ali, puxou pelo braço uma mulher bonita com seus quarenta anos, cabelos longos muito bem tingidos, sobrancelhas bem desenhadas e unhas impecavelmente pintadas.

Começaram a conversar, mas estavam distantes demais para serem ouvidos, embora ela soubesse exatamente qual o teor da conversa no momento que o viu apontar a sua porta e o rosto magro boquiaberto da mulher se direcionar a ela também, pura descrença estampada nos olhos amendoados.

Juntos, caminharam lentamente de volta à sua porta. A mulher bateu novamente à sua porta, uma combinação diferente da dele. Uma batida, uma pausa, duas batidas, uma pausa, duas batidas.  Ficou esperando uma resposta do outro lado e, ao recebê-la, os olhos tornaram-se molhados de expectativa e uma coisa rara em tempos como esse: esperança.

Ela se aproximou da lateral da porta e sussurrou delicadamente:

“Tem alguém aí? Tem realmente alguém aí?”

Ela hesitou por um instante, mas viu um enorme par de olhos azuis espiando-a por baixo da mesa, sorrindo pra ela com a mesma esperança que ela notara nos olhos daquela mulher estranha e sussurrou de volta.

“Sim. Estamos realmente aqui.”

Risos. Do outro lado, ela escutava risos e não conseguiu conter um sorriso. Mia saiu debaixo da mesa e colou-se a ela, agarrada em uma de suas pernas com olhos ansiosos. Destrancou a porta sem soltar a trava de emergência e entreabriu apenas o suficiente para que todos pudessem se ver. Encontrou olhos calorosos, alegres.

“Quem é essa coisinha mais linda?” - A voz da mulher indicava um sotaque do Nordeste.  Talvez Pernambuco, mas ela não saberia dizer.

“Esta é minha filha, Mia.” - Trocou olhares de cumplicidade com sua pequena companheira.

“Bom, Mia, é um prazer conhecer você” - Ele estendeu a mão pela fresta da porta aberta - “Ainda seremos grandes amigos”.

A menina ergueu os olhos para ela, sorrindo e questionando se poderia apertar a mão daquele estranho tão simpático. Ela acariciou a cabeça da menina e lhe sorriu de volta.

“Vá em frente.”

Ela apertou a mão dele com vontade, sacudiu-a uma vez e a soltou. Deve ter visto o gesto milhares de vezes antes. Ele riu.

Ele, que estava agachado, se levantou e redirecionou o olhar para ela.

“Vocês duas estão aqui sozinhas há muito tempo?”

“Já faz algum tempo, sim, mas eu parei de marcar datas depois que a conexão da internet desapareceu de vez.”

“Nós estamos juntando todos os sobreviventes no quinto andar, dividindo comida e outros itens importantes. Somos um grupo grandinho, cuidamos uns dos outros e podemos contar com toda a ajuda possível. Se quiser se juntar à nós, basta aparecer. Meu nome é Marcelo, essa aqui é a Samanta.”

Ele se aproximou do ouvido dela, a intenção claramente era de que Mia estivesse fora do alcance de suas palavras:

“Estamos iniciando o processo de limpeza do prédio. Muitos deles ainda estão presos nos quartos ou vagando os corredores e queremos acabar com isso antes de a eletricidade nos deixar na mão. Tome cuidado ao sair do apartamento, principalmente pela sua filha. Venha conosco e teremos certeza de que ninguém nem nada a toque sem sua permissão. Acho também que uma menina adorável como essa possa levantar a moral de nosso grupo, afinal acabamos de perder duas irmãs na limpeza do 18º andar e uma delas estava grávida.”

Ele se afastou sem mais uma palavra, acenou para a pequena Mia que ainda o olhava com admiração. Ele tinha olhos doces e, em tempos mais simples, ela confiaria nele sem pestanejar. A mulher tinha um sorriso largo, cheio de dentes muito brancos e passava uma impressão de força de espírito como ela nunca havia testemunhado antes. Despediram-se e a porta foi fechada, separando novamente os grupos. Ela olhou para baixo e encontrou a filha com a testa franzida, pensando muito profundamente em algo. Aquela expressão adulta em uma criança arrancou um esboço de riso dos seus lábios.

A menina olhou para ela com grandes e azuis olhos inquisitivos e soltou uma frase que ela nunca esperava sair de sua boca:

“O que você acha, mamãe? Confiamos neles?”

Ela olhou a filha, contrastando o olhar claro dela com seus enormes olhos escuros e respondeu como se falasse com um adulto:

 “Neste exato momento, meu amor, eu acho que não temos muita escolha.”

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now