Enquanto os sobreviventes em melhor estado carregavam os mais fracos escadaria acima, ela sentiu o cheiro de sangue assim que alcançara a porta do quinto andar. Deixou Guilherme amparando Carolina e empunhou de volta a faca suja que repousava em seu cinto. Ouviu os gritos ininterruptos de Samanta através de uma porta fechada enquanto seu marido jazia no chão do corredor. Tendo tido as pernas arrancadas até a altura do joelho, ele arranhava a porta com vigor em uma tentativa enlouquecida de tirá-la de seu caminho e alcançar o quarto em que sua esposa cuidava das crianças. Ela se aproximou lentamente e apenas quando seus pés tocaram o carpete do longo corredor conseguiu olhar em volta e descobrir que pelo menos uma das criaturas da garagem havia conseguido subir as escadas. Sussurrou em silêncio para si mesma.
“A porta. A porta da escadaria estava aberta.”
Aquele leve sussurro foi suficiente para atrair a atenção de João, ou pelo menos a carcaça apodrecida na qual ele estava se transformando a olhos nus. Quando o que restara dele se virou em sua direção, ela viu seu olhar leitoso olhando-a e salivando. João não existia mais, aquela criatura havia tomado seu corpo. Ela permaneceu imóvel aguardando ele alcançá-la se arrastando pelo carpete com os braços.
“Sinto muito.” - Ela cravou a faca na altura da têmpora dele, jorrando sangue no hall de mármore. O sangue dele ainda estava vermelho e quente, não havia passado tempo suficiente para que o coração imóvel deixasse de alimentar suas veias com oxigênio, de forma que seus fluídos ainda não haviam sido substituídos pela viscosa solução negra que as criaturas da garagem espirraram ao serem acertadas.
Conseguiu sentir, atrás de si, que o grupo de sobreviventes já havia alcançado a porta ao escutar o barulho inconfundível de um deles vomitando sobre o ladrilho e o subsequente cheiro ácido de bile que queimava suas narinas. Olhou para eles tentando se lembrar de todos que haviam descido junto a ela naquela manhã.
“Onde está ele? Cadê o Ricardo? Alguém o viu depois que toda aquela merda começou?”
Foi Marcelo quem quebrou o silêncio.
“Ele não estava entre os nossos mortos e eu não o vejo há horas. Acho... Acho que ele fugiu quando percebeu a gravidade da situação.”
“A porta. A porta estava aberta. Ele correu de volta pela escada e deixou a porta aberta.”
Essa troca de palavras foi o suficiente para atrair a atenção de todas as criaturas recém transformadas que vagavam a esmo pelo corredor. Escutaram os passos arrastados e os grunhidos antes de poderem ser surpreendidos pelas versões renascidas de seus antigos companheiros. Ela foi pessoalmente responsável por destruir qualquer um que chegava até ela. Todo o ódio que sentia por Ricardo naquele momento era suficiente para transformá-la em uma incansável máquina de destruição. A cada criatura que ela atingia, aguardava ansiosamente para que a próxima chegasse, saboreando cada momento como uma preliminar para o momento em que a versão menor e covarde de Ricardo finalmente chegasse, mas ele nunca veio.
Todas aquelas pessoas estavam mortas por causa dele, mas aquele desgraçado havia conseguido escapar, se esconder em um dos apartamentos em segurança.
Atrás dela, o resto do grupo diminuto lidava com as criaturas que atravessavam o hall da escadaria do outro lado do prédio e agradecia em silêncio por ter escutado o grito choroso e humano de Samanta, pois isso lhe dava toda a certeza que precisava de que a sua pequena Mia estava em segurança. Naquele momento, tudo que importava era que ela conseguisse arrancar a cabeça de Ricardo com os próprios dentes da mesma forma que elas criaturas deveriam ter feito mas não foram capazes.
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Dia Zero (Saga Zero #1)
HorrorNo meio de uma crise de saúde mundial, São Paulo é tomada por uma epidemia que faz com que os mortos levantem em busca de carne humana, isolando do mundo uma garota despreparada que se vê forçada a enfrentar uma nova realidade na solidão completa de...