Prólogo

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Até mesmo deitar-se na cama foi doloroso. Depois de horas jogada no chão do chuveiro assistindo as manchas roxas tomarem forma e se expandirem sobre a pele, reuniu o resto de suas forças para levantar-se apoiando no beiral da janela e dar alguns poucos passos incertos à cama ainda feita. Jogou-se delicadamente, ainda nua e molhada, sobre o edredom roxo - alguns tons mais claro do que as manchas que se multiplicavam em seu corpo. Desejou fechar os olhos e se permitir desfalecer, mas permaneceu imóvel, sentindo cada músculo contrair involuntariamente em resposta aos estímulos de dor e, literalmente, assistiu o tempo passar com o olhar fixo no neon vermelho do rádio relógio sobre sua cabeceira cuja luz se projetava sobre o rosto machucado.  Pela primeira vez em semanas sentiu alivio em saber que o marido estava em outro continente e, em três meses, quando retornasse, seus hematomas já estariam alcançando um saudável tom amarelado, talvez até desaparecendo por completo. Com esse pensamento ainda flutuando na cabeça confusa, finalmente adormeceu.

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Abriu os olhos sentindo o travesseiro úmido sob o rosto e só então percebeu que estava deitada em uma poça de seu próprio sangue fresco. Apoiando seu peso contra as paredes de gesso, caminhou de volta até o banheiro e encarou a própria face que a observava assustada no espelho. A imagem refletida a fez vomitar compulsivamente até que não houvesse nada além de bile escorrendo pela garganta: além dos hematomas que deformavam a pele clara, um enorme corte cobria a maior parte do lado esquerdo de seu rosto, da linha do cabelo até a mandíbula deslocada. Aberto, o ferimento supurava sangue e pus. Os grandes olhos escuros permaneciam o único traço reconhecível de seu rosto antigo. Assim, direcionou seu foco para o reflexo deles, tentando recobrar forças e fazer o que precisava ser feito.

Registrando cada pontada de dor causada por cada movimento, cobriu o corpo com um vestido cinza de malha fina, chamou o resgate pelo celular trincado e sentou-se no sofá esperando sua chegada. Com a respiração falha, acendeu um cigarro, tossiu, deu um trago mais longo e finalmente se permitiu chorar, um choro silencioso de quem já não espera por nada além do inevitável.

Foram muitos dias passados no hospital, talvez semanas, mas o fluxo constante de morfina em suas veias não lhe permitiu manter uma contagem apurada de tempo. Não passou por cirurgias, mas seu rosto precisou de mais de 50 pontos de plástica e, além da mandíbula, sua perna direita e o ombro esquerdo precisaram ser recolocados no lugar. Três costelas foram quebradas, de modo que o tronco ainda estava enfaixado no dia em que recebeu alta. Não recebeu visitas, pois se certificou de que ninguém soubesse de sua triste tragédia particular.

Não havia ninguém para recebê-la na saída do hospital. Um táxi a deixou na portaria do prédio vestindo o mesmo vestido cinza barato com a qual havia partido. Chegou ao minúsculo apartamento e o encontrou no exato estado em que o havia deixado, incluindo o sangue - agora seco - sobre o travesseiro. Cansada demais para se importar com coisas tão mundanas, deixou o corpo amolecer no sofá. Mastigou alguns comprimidos para dor que havia recebido do médico do plantão responsável pela sua alta e ligou a televisão.  Adormeceu rapidamente assistindo ao noticiário documentar uma epidemia séria de gripe e febre que estava assolando as principais capitais do país.

Dia Zero (Saga Zero #1)Where stories live. Discover now