Capítulo 1

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Por um breve momento houve calmaria abaixo dos meus pés. Espadas e facas repousam nas cinturas dos homens, semelhante aos relógios guardados em seus bolsos, situação rara naquela terra pertencente a um continente de ambição violenta.
Vago pelo chão transparente de meu lar sem me preocupar com conflitos naquela terra cheia de navios e igrejas. Percorro o caminho entre duas praças, observo a paisagem, raro eu conseguir me atentar a detalhes do ambiente. Ocasiões pacíficas como a que presencio me fazem recordar o começo da raça de alma dualista de inúmeras nomenclaturas.
As grandes feras e a fome os forçaram a serem corajosos. A calmaria entre eles perdurou por poucos anos, quando a caçada não havia se tornado necessária, quando o convívio não tinha sido estabelecido, quando as sociedades não haviam sido imaginadas, quando a sexualidade não era tão latente nos homens.
Continuo andando calmamente, aproveito o sossego, obviamente, não será longo. Me deparo com a minha companhia no infinito espaço branco nevoento em que existo. Meu igual está focado no que ocorre abaixo. Fico ao seu lado tentando achar o que pode ter feito com que permaneça distraído em relação a mim. Olho para os lados, vejo navios zarpando com poucas pessoas. Alguns cheios deixam o porto rumando para outras terras portuguesas.
Gêmeo não tem o dever de observá-los como eu, mas, sempre está perto de mim, às vezes conversamos sobre as decisões dos animais. Me ensinou sobre os sentimentos que aprendeu em milênios de observação, é um especialista de homens e mulheres.
Acho o espírito deles tão selvagens quanto os das raças inferiores, o potencial para a agressividade é infinito, nenhum outro animal é tão maligno, o restante em essência não tem maldade, apenas eles tem dualidade.
Após algum tempo ainda estamos contemplando o cenário, eu tento achar a imagem que o mantém paralisado, está tudo em normalidade. O chamo, pede para que não o distraía, não o obedeço, pergunto sobre o que o prendia ao mundo abaixo de nós, me guia para um dos navios, não observo nada anormal, ele insiste para que eu olhe.
A estrutura está cheia dos homens que promovem paz entre os abastados e os necessitados, são os Provedores da Nova Cruz, jocosamente chamados de Amantes de Orfãos. Estão agitados, sentimento contrário ao que aprendem com seus mestres, o frio intenso da noite não impede que seus corpos suem.
Carregam caixas e malas para dentro dos compartimentos utilizando a força de suas pernas e braços. São magros, comem o necessário, a energia que utilizam era maior do que tem dentro de si.
Crianças são carregadas também, as vestimentas não os protegem contra o frio, tremem. Tem entre três e onze anos de idade, órfãos que são acolhidos para cresceram sob proteção.
As caixas e malas estão todas postas dentro dos compartimentos internos. As crianças são colocadas nos apertados alojamentos juntos das amas de leite. Elas tentam fazê-las descansarem, colocam mantas em seus corpos, a maioria adormece lentamente.
Os provedores mais jovens se organizam para buscarem o restante dos membros. Há gritaria contínua, disputam entre si o berro mais alto, exigem pressa, tropeçam no caminho.
Contei rapidamente quantos estão no navio, postam-se duzentos entre homens, crianças e mulheres. Restam se juntarem a eles sessenta senhores, ou sábios, e poucos adultos joviais.
Os idosos logicamente não conseguem alcançar os mais jovens, a corrida deles é ofegante. Deixam-nos caírem, não os ajudam a se levantarem, poucos provedores que correm próximo de seus calcanhares os auxiliam. É uma ocasião única, me prendo a ela.
O frio congela os dedos dos mais experientes que usam sandálias sempre, ao invés de botas. Não se movimentam normalmente, as juntas de seus corpos doem, os membros estão na cor roxa.
Os jovens chegam aos poucos, agarram qualquer parte do corpo para levantarem os idosos. Apertam-nos com firmeza, correm imitando cavalos, usam a força das coxas, os joelhos alcançam a altura da barriga.
No convés, o capitão revela a intenção de partir sem esperar o resto dos provedores. Uma discussão se inicia entre ele e o líder com o título de Mestre Iluminado. Salivas acertam ambos os rostos, o albino mestre pega seu colarinho e o puxa para si. O capitão aplica-lhe uma cabeçada, rapidamente seus discípulos os separam. Ao mesmo tempo, os idosos adentram o convés junto dos mais jovens, parecem bovinos entrando na cerca.
Restam seis provedores para entrarem no navio, entre eles três senhores. Os músculos das pernas deles doem, não conseguem se levantar, se arrastam, o fazem por um longo caminho. A frente notam a aproximação de homens vestindo as mesmas togas vermelhas, brancas e pretas que eles. Dois os levantam bruscamente, ordenam que corram, reclamam que não poderiam, não são ouvidos.
O terceiro teve sorte com seu ajudante, explica-lhe a situação de suas pernas. O jovem homem agarra-lhe e o ergue, anda depressa para acompanhar os dois companheiros adiantados.
Enquanto é carregado, percebe os braços de seu ajudante cedendo, sente os batimentos do coração se tornarem extremos, a velocidade do andar diminui, cuidadosamente o repousa no chão.
Observa o jovem se ajoelhar e tentar recobrar o fôlego. Ouve passos de diversas pessoas se dirigindo a eles. Não quer utilizar sua voz, tenta achar um objeto, próximo de sua mão esquerda tem uma pequena pedra, arremessa. Acerta-lhe, diretamente no olho esquerdo.
O jovem se contorce, os olhos marejam lágrimas e sangue, não consegue abri-lo, torna-se caolho. Olha para o idoso, que aponta para trás dele.
Se levanta para observar os que vem, a má iluminação não o impede de notar os pedaços grossos de madeira nas mãos de aproximadamente setenta homens, o som de correntes é nítido.
Anda em direção ao idoso, carrega seu corpo como fizera antes. Corre, os joelhos doem, o vento parece mais gelado. Não consegue correr dez metros, ouve passos acelerados em suas costas, não sabe quantos. Pede ao seu deus que lhe dê a energia para correr mais. Aciona os músculos, adquire velocidade.
Os perseguidores insistem, sente-os próximos, alguém o empurra, cai sobre o provedor idoso. Se vira, são os animais que temem há meses, os chamados Pólvora de Braga.
A briga entre o Mestre Iluminado e o capitão continua, assim como os gritos e a entrada dos provedores. Chegam mais quatro, largam os dois idosos no chão. Se aproximam de seu mestre, o capitão xinga a todos. Informam-lhe que restam dois membros. O Mestre Iluminado põe as mãos na testa, vai à beira do navio, enxerga-os virem, mas, estão acompanhados.
O barulho de pés não cessa, o escuro não revela quantos chegam. Dois provedores surgem caídos e com medo, rastejam até os cento e sessenta e três provedores que estavam juntos aguardando-os. O jovem caolho segura os tornozelos do Mestre Iluminado, que puxa sua toga, envolve o braço esquerdo sobre o pescoço dele.
Os raivosos entram, vestem trajes sociais, casuais e eclesiásticos. Se unem com suas mãos portando pedaços de madeira com ou sem pregos, correntes enferrujados e garrafas de cerveja.
O Mestre Iluminado fala no ouvido do jovem caolho. O tom baixo não é empecilho para mim, ele deseja que vá para o compartimento interno chamar pelos outros. Prontamente se mexe, é agarrado.
Avança um homem de jaqueta vermelha e colete bege. Nada, não segura nada. Usa óculos, o olhar é inofensivo, o dispositivo óptico acresce essa característica. Olha intensamente para o jovem caolho e o Mestre Iluminado. Se vira para seus companheiros, ergue suas mãos, berra, imitam seu gesto e levantam suas armas.
O caolho é solto. Empurra seus companheiros provedores com gentileza, os esbarrões não mudam as expressões. Os corpos estão endurecidos, principalmente os braços, a maioria cruza-os, talvez seja o frio. Segue para a porta do compartimento interno, abre utilizando todos os músculos do braço e das mãos.
A maior parte das crianças dormem sobre as pernas e seios das amas de leite, que estão chorosas ou tensas. As crianças acordadas o encaram, se intimida com os olhares. As companheiras se erguem. O caolho informa-os do que acontece acima, colocam as mãos nos cabelos. Ouvem sons de balbúrdia e maldição do lado de cima, os pequenos animais despertam um a um.
O Mestre Iluminado olha a manifestação barulhenta dos extremistas. Mantém seu corpo e pescoço em diagonal para observar os passos do jovem caolho. A visão inquieta-se, observa os extremistas e seu discípulo.
Os outros provedores o observam, os joelhos tremem, olham para o mesmo lado que o Mestre Iluminado. As viradas de pescoço constantes alertam um dos extremistas, seus olhos atentos tentam encontrar algo suspeito, o número de provedores dificulta sua visão. Vê um homem agachado e andando, acompanha enquanto ele abre a porta do compartimento. Se aproxima do agitador de óculos, os braços erguidos ficam na altura dos joelhos, o óculos cai.
O Mestre Iluminado nota alguém olhá-lo, ajeita o corpo, o agitador o observa. Lábios cerrados, olhos semifechadas, rugas por todo o rosto. Ele ergue o dedo indicador direito, aponta para trás. Entende o que significa, coloca as mãos na parte de trás da cintura.
O agitador anda em sua direção, coloca as mãos em seus ombros. chama os extremistas ao seu lado, abre a boca, quer que o navio zarpe. O Mestre Iluminado não precisa avisar o capitão, ele se dirige a sua trupe, dá as ordens.
Pega o óculos e recoloca. P uxa de sua cintura uma navalha, passa-a pelo peito do Mestre Iluminado, para a ponta do metal em seu mamilo direito.
Sente calafrios com a sensação gelada da arma, o coração acelera, fecha os olhos, inicia sua reza, pede por coragem. Fita o homem, retira um punhal, acerta o pescoço do agitador, o sangue tinge sua toga.
A tremedeira da mão o faz soltar o punhal, os pés e joelhos tornam-se leves, está de joelhos e com as mãos nos olhos, é seguro por seus discípulos. Os extremistas avançam balançando suas armas, suas faces estão vermelhas, olham diretamente para o Mestre Iluminado. Gritam que irão massacrá-lo lentamente. Os provedores mais distantes mantém-se parados, olham ao redor, talvez tentando encontrar saídas para a erupção que se inicia.
O Mestre Iluminado se afasta dos provedores. Arrasta seus joelhos na direção dos extremistas, junta as mãos em sinal de reza, ou súplica? Não sei diferenciar. Tenta convencê-los utilizando frases que lera do livro sagrado dos cristãos. Continuam avançando, aumenta o tom de suas palavras, jogam garrafas de cerveja por todo o seu corpo.
Seus discípulos se movem, tentam fazer um escudo a sua frente. Os extremistas se aglomeram em volta deles. Após muitos empurrões e agressões, seis atravessam a barreira humana, batem os pedaços de madeira na cabeça e nas costelas do Mestre Iluminado. A carne abre vários golpes consecutivos. A toga e a pele rasgam e prendem nos pregos, o sangue pinga no chão e pinta os sapatos e sandálias dos extremistas. Mais quinze surgem, batem no português albino.
O provedor caolho abre o compartimento interno lentamente. Gritos furiosos e de dor ecoam, seus ouvidos e espírito doem. Corre visualizando milhares de homens berrando e dançando e penas sobrevoando sua cabeça. Não tem o controle dos tornozelos, cai e se ergue.
As cenas fazem o caolho recordar-se das brigas de galo que viu em sua infância no quintal de sua antiga casa. Vê as faces ensanguentadas, pedaços de pele e cabelo no chão. Era igual ao estado daqueles animais.
Alguns provedores rezam rapidamente. Outros beijam as mãos um dos outros. Correm em direção do Mestre Iluminado. Deitam-se sobre ele , depois uns sobre os outros. Os provedores mais abaixo reclamam, sentem as costelas cederem ao peso, berram como cordeiros antes da degola. Aqueles que estão acima protegem suas cabeças dos golpes dos extremistas.
Demais companheiros usam seus punhos para atacarem os agressores. Acertam orelhas e narizes, atacam mais provedores do extremistas. O caolho visualiza apenas galos tentando depenar o outro galo a frente. A humanidade e a bondade aprendidas desvanecem.
Discretamente se distancia da luta. Vê a frente a única parte do navio que não tem sangue. Postasuas costas contra a sustentação do timão, encolhe os braços e junta as mãos, curva as costas e o pescoço, dobra os joelhos, assemelha-se a um bebê. Fecha os olhos, evita virar a cabeça. Seus pensamentos o inserem nas brigas de galonovamente. O som do canto dos bichos invade sua realidade. Coloca as mãos nos ouvidos, o barulho da morte soa no seu presente e no seu passado.

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