vinte e dois.

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A noite chegou mais cedo do que eu imaginava. E apesar de ter passado a tarde toda sozinha a encarar o nada não me senti cansada. Pelo contrário, os meus pensamentos faziam questão de manter-me acordada a pensar e pensar, sem nenhuma brecha para o descanso. Amanhã tentaria andar pela casa, ver se  haviam outros entretenimentos por aí enquanto Greta ia ao colégio.

E pensando nela, não sei porque desperdicei o meu tempo a tratando mal. Ela é uma boa companhia, no final das contas. E ter alguém para conversar nesse lugar é, no mínimo, reconfortante.

Amarrei os meus cachos num coque desajeitado e sai do quarto em direção ao fim das escadas. Alguns minutos atrás Jade havia tido a gentileza de ir até o meu quarto para avisar-me sobre o jantar que eu estaria presente a contragosto. Sou inteligente o suficiente para não ignorar a ameaça daquele homem — com algum problema mental — e ficar no quarto. Seguirei o conselho de Jade que é: não fazer com que ele me odeie mais do que já odeia.

No momento em que cheguei no fim das escadas e apenas vi Greta na mesa a comer franzi as sobrancelhas. Ela já havia notado a minha presença, mas permanecia com o olhar preso na comida no seu prato.

Sentei-me de frente para ela e observei os outros acentos que se encontravam vazios.

— Theron e o seu pai? — perguntei. — Não vão jantar conosco?

Ela finalmente levantou o rosto e encarou-me.

— Não — deu de ombros. — Eles preferiram ficar até tarde na empresa.

— Theron não é novo demais para trabalhar numa empresa? — a pergunta escapou da minha boca antes que eu pudesse, impedi-lá.

Um suspiro pesado saiu da sua boca. Ela não estava feliz.

— Ele é um “prodígio”. O orgulho do meu pai. O garotinho que com apenas três anos já sabia falar francês e outras línguas, que entrou na universidade com catorze anos e o empresário mais bem-sucedido da sua idade — o veneno não passou despercebido na sua voz e em cada palavra. — O homem que eu deveria usar como exemplo para seguir — revirou os olhos.

Não precisei processar mais nada para entender o motivo dela falar aquilo com tanta raiva. O seu pai provavelmente esfregava na cara dela o quanto ela deveria ser como o seu irmão mais velho e com certeza não o fazia de forma bonita.

— Ele sempre me trata como lixo quando estou ao lado dele — meteu um pedaço de carne na boca e mastigou com uma certa intensidade. — E eu não tenho culpa de não ter nascido com um QI fora do normal. Não sou obrigada a saber mais de quatro línguas.

Eu apenas a escutava em silêncio, a servir-me o que tinha na mesa e a vendo despejar toda a sua angústia.

— Eu sou só uma garota de dezasseis anos — adicionou, a levar o copo de água até a boca em seguida. — E a minha vida está longe de ser normal, entende? Ele coloca tanta carga em mim… o maldito já me levou na empresa para trabalhar a força e eu não sabia nada daquilo. Para além do meu sonho não ter a ver em gerir uma empresa jornalística. Eu quero ser uma veterinária, mas é claro que ele não irá deixar porque precisamos seguir a merda do negócio de família. E sinceramente, em que século ele pensa que estamos?

Meti uma garfada de arroz com um molho que não conhecia na boca, atenta ao drama da rapariga a minha frente. Quanto mais informações ela soltasse, melhor. Então, não a interromperia.

— Mas ele já tem o Theron que faz tudo que ele manda — continuo. — Isso deveria bastar, mas é claro que Robert Halstead sempre quer mais. Se não fosse pelo Theron ser um ótimo irmão comigo eu juro que já teria arranjado uma forma de fugir dessa casa — ela parou, de repente e então a sua feição se tornou melancólica. — Sinto tantas saudades da minha mãe. Ela sempre me ajudava a recuperar-me desses ataques de raiva súbita do meu pai e agora… ela não está mais aqui.

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