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— Sinto tanto a sua falta, mãe — sussurro a sentir uma lágrima  deslizar pela minha bochecha.

A limpei de forma rápida antes que ela chegasse no fim do meu rosto e respirei profundamente a tentar impedir com que mais outras descessem.

Não era fácil encarar a lápide a minha frente e não sentir um vazio no peito. Quem disse que o tempo cura tudo equivocou-se porque não importa a quantos dias, semanas, meses e anos já se tivessem passado desde a sua morte eu ainda sentia a sua falta. Eu ainda lembrava do sorriso amável no seu rosto, do cheiro de rosas que estava empregado em suas roupas, dos seus abraços e da sua voz. Eu lembrava de todos detalhes dela e talvez seja por isso que nunca deixaria de chorar por ela todas as noites de madrugada. Seria difícil esquecer das nossas brincadeiras e da paz que a mesma trazia para minha vida.

Se tinha uma coisa que não entendia era porque o destino a levou de mim tão cedo. Ela ainda tinha vários conselhos para dar-me sobre a adolescência e reeprender-me quando eu fizesse algo de errado. Anna Lake ainda tinha muito para viver e o câncer destruiu isso.

Apertei com cuidado a rosa nas minhas mãos para que os seus espinhos não me machucassem e sorri sozinha ao lembrar-me que as rosas-vermelhas eram umas das suas preferidas.

Suspirei com o pensamento e agachei-me para colocar a rosa na lápide a minha frente, mas a silhueta de alguém a alguns metros de distância fez-me parar o movimento. Uni as sobrancelhas e olhei para a silhueta. Era um rapaz. E ele estava a alguns passos de distância. Encarei os seus ombros largos cobertos por uma jaqueta de couro preta surpreendida com o facto de ter estado tão absorta em meus pensamentos o suficiente para não ter notado a sua chegada.

Como se pudesse sentir a intensidade do meu olhar ele virou o seu rosto na minha direção. O seu movimento foi tão rápido que não tive tempo de desviar o olhar e fingir que não o tinha notado.

Senti a minha respiração falhar gradualmente e o meu coração começar a bater num ritmo frenético. E não estava assim por causa das suas íris acinzentadas ou o seu cabelo preto com alguns fios rebeldes espalhados pelo seu rosto. Eu estava com um vazio no peito porque o rapaz a alguns metros de distância estava com a feição abatida. Lágrimas rolavam no seu rosto quando os nossos olhares se encontraram.

A nossa troca de olhares durou alguns segundos até ele desviar.
Mesmo não, tendo o seu olhar sobre mim eu ainda o encarava.
Quem quer que estivesse ali enterrado era uma pessoa importante para ele.

Soltei a respiração que estava a prender e com passos decididos, mas lentos, caminhei na sua direção.

Eu não conhecia o rapaz. Não fazia ideia de quem ele seja, mas tinha certeza de uma coisa. Ele precisava de ajuda. Eu conhecia aquele olhar. Era o mesmo que via quando olhava o meu reflexo no espelho. Sabia o quanto a perda de alguém que amamos podia ser dura e fatigante. E era ainda mais difícil de suportar quando ninguém a sua volta consolava-te como devia ser.

Eles diziam: eu sinto muito.

Como eles podiam sentir tanto se não viveram comigo metade do meu sofrimento?

Eu não sabia pelo que aquele rapaz estava a passar, mas se o ignorasse e fosse embora não me sentiria em paz comigo mesma. Eu não estou a dizer que serei a sua salvação, mas farei a minha parte que seria tentar o passar um conforto moral.

Quando finalmente cheguei no seu encontro ele estava com o olhar preso na lápide a sua frente. As lágrimas ainda caiam nos seus olhos e senti o meu coração doer.

Eu sei que ele já havia notado a minha presença. A sua mandíbula estava travada e os seus punhos cerrados. Não me intimidei com os seus gestos e quando abri a boca para quebrar o silêncio ao nosso redor de repente, as palavras havíam ficado presas em minha garganta. Lembrava-me do dia em que minha mãe morreu e em como queria ficar sozinha. Não queria escutar as palavras de conforto de ninguém. Queria que fosse eu e o silêncio. Talvez o rapaz ao meu lado também queira isso, mas já era tarde demais para virar as costas e ir embora como se nada tivesse acontecido. Respirei fundo e escolhi bem as palavras em minha cabeça para não tornar o clima estranho.

— Eu não sei como você se sente, mas… — não terminei a minha frase porque o seu riso interrompeu-me. Ele era sarcástico e frio.

O rapaz levantou o seu rosto para olhar na minha direção. Os seus olhos estavam vermelhos e sua pele branca levemente corada.

— Não preciso que ninguém me console — a sua voz estava quebrada, mas rude e audível. — E muito menos da sua pena.

Desviei o olhar dele, incomodada com o seu tom.

— Não senti pena de você — fui rápida em justificar. — Só queria ajudar — murmurei, mas alto o suficiente para ele escutar.

Ele limpou as lágrimas no seu rosto com as costas da mão e em seguida maneou a cabeça em direção a saída do cemitério.

— Perdeu o seu tempo. Vá embora.

Não me abalei com a sua fala. Pelo contrário, fiquei irritada. Eu sensibilizei-me com ele e só queria ajudar. Ele não precisava tratar-me dessa forma. O mínimo que deveria fazer era agradecer a minha ajuda e pedir para ficar sozinho. Eu respeitaria a sua decisão e iria embora.

— Não precisa me tratar assim — redargui, no mesmo tom de voz que o dele. — Sei que não nos conhecemos, mas o mínimo que deveria fazer é me tratar com o respeito que todo ser humano merece.

Eu não tinha paciência para lidar com muitas coisas. E a sua atitude bruta despertou fúria em mim. Eu só queria ser simpática.

— Me poupe do seu discurso de pessoa solidária — ele diz, com desdém. — Foda-se a sua boa intenção.

— Foda-se você, idiota — devolvi quase a raspar os dentes uns nos outros de raiva. — Você deveria aprender a tratar bem as pessoas que tentam ser amigáveis com você e não agir como se fosse feito de pedra e não tivesse sentimentos.

— E você deveria aprender que não se deve falar dessa forma com desconhecidos — respondeu, a aproximar-se de mim. E quando ficou com o rosto a alguns metros de distância de mim acrescentou. — E você acabou de se meter com a pessoa errada.

Seria mentira se dissesse que não fiquei um pouco assustada com as suas palavras.

Mas o orgulho impediu-me de o demonstrar. Se ele queria brincar de ameaças eu o faria acreditar que era uma boa jogadora tanto quanto ele.

— Talvez seja ao contrário — repliquei. — Talvez você é que tenha se metido com a pessoa errada.

Não esperei por sua resposta. Apenas o encarei com escárnio pela última vez e fui embora.

NeutroOnde as histórias ganham vida. Descobre agora