sete.

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Entrei no dormitório e fechei a porta atrás de mim enquanto arrastava o meu corpo que parecia mais pesado que o normal até a cama a alguns passos de distância. Eu havia acordado cedo para tomar banho — antes do orfanato inteiro acordar e ter que esperar horas até a minha vez de tomar banho chegar — e depois voltar para a minha querida cama e dormir até a hora que queria.

Ontem eu e Keanu chegamos muito tarde e tentamos fazer o menor barulho possível para não acordar ninguém e apesar de ter um mau pressentimento espero que não tenhamos acordado porque se tinha uma coisa que os órfãos que cá viviam gostavam era ferrarem uns com os outros.

Maxine ainda estava na sua cama dormindo e  roncando. E quando digo que ela o faz a mesma não acredita em mim.

Deitei-me na cama e fechei os olhos, mas fui interrompida quando alguém entrou no dormitório. Praguejei baixo, ainda sem abrir os olhos com a esperança de que a tal pessoa não quisesse falar comigo.

— Falyn — o meu corpo foi balançado e uma voz familiar ecoou nos meus ouvidos.

Abri os olhos a contragosto e fitei as íris azuis de Anabel.

— Bom dia — ela sorriu e eu sentei-me na cama. Incapaz de mandá-la para o inferno de onde saiu.

Ela tinha um caderno, livro e um estojo onde tinha provavelmente vários lápis de cor que um projeto social arrecadou para nos oferecer dá última vez que cá vieram, dois meses atrás.

Eu não a culpava por vir no meu dormitório as sete da manhã porque normalmente eu já estava acordada a essa altura. E nós sempre estudávamos no dormitório porque era o único lugar no orfanato inteiro que havia silêncio.

— Parece cansada — ela sentou-se ao meu lado quando afastei-me e dei espaço para ela.

— Não estou — a minha voz soou mais arrastada do que deveria. — É impressão sua.

— Se estiver cansada posso voltar mais tarde — ela fez menção de sair da cama, mas a interrompi.

— Não. Eu tô bem — a assegurei a tentar ignorar o sono que estava a sentir.

Ela concordou com a cabeça e abriu o seu caderno mostrando-me onde tinha dificuldades. A expliquei tudo e como Anabel era uma garotinha de seis anos esperta entendeu tudo.

— Vamos fazer o penúltimo exercício — digo sentado melhor na cama. — No alfabeto abaixo — apontei para onde tinham todas as letras do alfabeto. — Circule as vogais e pinte as consoantes.

Ela fez uma expressão pensativa.

— Você sabe quais são as vogais, não é?

— Sim — ela concordou. — São a, e, i, o e u.

Sorri na sua direção orgulhosa.

— É exatamente isso. E agora, a senhorita irá colocar todas essas vogais dentro de um círculo e nas outras letras do alfabeto…

— Irei pintar porque são consoantes — completou por mim.

Acenei de forma positiva enquanto observava ela fazer o exercício com mestria e rapidez. Quando ela terminou dei uns tapinhas nas costas dela.

— Esse é o mais fácil — repliquei, enquanto encarava o próximo exercício. — Pinte o quadrado onde só tem letras.

Não precisei explicar mais nada porque ela levou um lápis de cor amarelo e pintou no sítio certo.

— Obrigada, Falyn — disse assim que terminou e então arrumou as suas coisas.

— De nada. É sempre um prazer ajudar uma garotinha tão inteligente como você.

Ela corou e sorriu para mim pela última vez antes de ir embora.

Quando ela fechou a porta deitei-me na cama pronta para recuperar o meu sono perdido, mas fui interrompida. Outra vez.

Alguém entrou no dormitório e eu pedi a Deus que fosse uma das amigas de Maxine que quisesse falar com ela, mas no fundo eu sabia que o meu azar era mais forte que tudo e todas as coisas.

— Ei, Fal. Você precisa acordar — reconheci a voz de Keanu.

— Eu só quero dormir! — gritei exageradamente me sentado na cama.

— Depois do que eu lhe contar vai perder o sono  — a sua voz soava preocupada e os meus olhos gradualmente começaram a ficar menos pesados.

— O que aconteceu?

— Alguém ferrou com a nossa vida e nos denunciou para a Sra. Rebeca.

O meu coração parou de bater por alguns segundos.

Merda.

Nós estávamos encrencados até o último fio de cabelo.

— Como? Nós fizemos tudo direito.

— Se fomos descobertos não — ele sentou-se na minha cama. — Estamos na merda — suspirou. — Foi bom conhecer você — brincou, mas não consegui rir ou sorrir.

Deitei-me na cama e como Keanu havia dito não consegui dormir. A minha mente estava irrequieta ao imaginar as mil e uma formas que Sra. Rebeca poderia nos torturar. E passar a noite naquela sala era a que mais me assustava.

(…)

— Isso tem um ótimo aspeto, Annette — digo a observar a comida que tem no meu prato e ela mostra-me um sorriso fechado. O seu rosto tinha pequenas e percetíveis rugas. Ela já estava na casa dos cinquenta e eu gostava dela porque me lembrava a minha avó e era muito simpática. Por isso não me importava em conversar com ela e a ajudar a lavar os pratos na cozinha algumas vezes.

— Não conte a ninguém, mas fiz esse prato pensando que em você — sussurrou apenas para eu ouvir a fazer-me rir.

— Ei, Falyn! Nós também estamos com fome — Tanner, um garoto que não vai com a minha cara gritou no fim da fila irritado.

— Desculpa — o respondi sem graça e ele limitou-se a revirar os olhos para mim.

E quando me afastei ouvi Annette gritar e dizer para ele que o mesmo não comeria a sobremesa por ser mal educado e apertei os olhos com força quando senti os seus olhos me queimando as costas por conta da sua raiva.

Fui-me sentar na mesa onde estava Keanu, Thomas e mais algumas pessoas.

— Porque Tanner está te olhando de uma maneira mortal? — Thomas perguntou no momento em que me sentei ao lado dele e de frente para Keanu.

— Annette proibiu ele de comer a sobremesa — respondi a encarar a comida no meu prato.

Eu não estava com fome, mas se Annette disse que fez a pensar em mim eu iria comer.

— Porquê? — Keanu redarguiu.

— Porque Falyn estava a conversar com aquela velha como se não estivessem pessoas atrás dela morrendo de fome — Josh respondeu por mim quando abri a boca para responder.

Revirei os olhos. Nós não nos dávamos bem porque ele insistia em testar a minha paciência até o limite. Foi ele que começou com o movimento “vamos evitar Falyn porque ela se acha melhor que todos”. E se tinha uma pessoa que eu mais odiava com todo o meu ser era ele.

— Não me lembro de alguém ter-lhe perguntado alguma coisa — repostei, começando a ficar irritada com o simples facto de o ver respirar.

— Mas a resposta já foi dada — o sorriso convencido no seu rosto cresceu. — E não preciso da autorização de ninguém para falar o que me dá vontade.

— Tudo bem, mas isso não lhe dá o direito de se meter nas conversas dos outros — rebati.

— E pensa que isso me importa?

Keanu lançou-me um olhar apelativo, me pedindo silenciosamente que eu o ignorasse e continuasse com a minha vida.

Eu sabia que se Josh quisesse magoar-me fisicamente Kenau não o permitiria, mas ele não gostava desse tipo de briga.

Porque foi assim que o seu pai morreu. Ele tinha nove anos quando a sua mãe abandonou ele e o seu pai fugindo com todo dinheiro que eles tinham. O pai de Keanu estava desempregado nesse momento e por isso criou muitas dívidas se metendo com pessoas que não deveria que quando perceberam que ele não seria capaz de pagar as dividas o espancaram até a morte.

Então ele não queria de alguma forma se tornar naquilo que aquelas pessoas eram quando mataram o seu pai.

E eu amava-o muito, por isso  engoli todo o meu orgulho e comecei a comer como se Josh não existisse.

E o riso irónico dele ecoou por todo o refeitório.

— Agora vai ignorar-me e agir como a covarde insuportável que é — desdenhou e começou a rir. — Você é tão patética.

— Penso que já está na hora de você calar a boca — Keanu respondeu.

— Não se meta. Você sabe que essa garota é insuportável. Se até o pai dela abandonou-lhe é porque não aguentava olhar para cara azeda dela e decidiu se livrar dela… Eu também o faria se tivesse uma filha como ela.

Juro por Deus, que eu odiava o facto de todos ali saberem  o porquê de cada um estar ali. Por mais que você não quisesse contar tinha alguém que conseguia essa informação sei lá de onde.

— Fecha a boca! — gritei com todo o ar nos meus pulmões. Sentindo o meu coração bater num ritmo acelerado e os meus olhos arderem de raiva.

Esse assunto sempre mexia com o meu psicológico porque eu ainda não havia superado.

Era uma ferida que nunca iria se cicatrizar não importa quanto tempo passasse.

Ela sempre iria doer.

— Você não tem a merda do direito de falar isso — gritei novamente, apontando o dedo na sua direção.

— Que foi? Vai chorar agora porque estou a falar a verdade?

— Se você não fechar a boca agora eu mesmo virei aí e farei isso com as minhas próprias mãos — Keanu interviu se levantando.

— E o que era suposto isso causar-me? — gritou no mesmo tom. — Porque medo não foi.

Essas palavras foram o suficiente para que o garoto a minha frente perdesse a cabeça, por alguns segundos.

— Você é um, merda que não tem autoestima nenhuma e humilha as pessoas apenas para se colocar em cima. Mas quem é o abandonado aqui é você. Os seus pais morreram porque preferiam a morte do que cuidar de você! — Keanu o respondeu e todos no refeitório ficaram em silêncio.

Todos chocados com o que saiu da boca dele, até eu. Eu poderia odiar Josh até o inferno, mas nunca o tentaria afetar desse jeito. Falando da família dele.

Antes que tudo se tornasse uma confusão andei na direção do meu amigo e peguei no seu pulso o puxando para fora do refeitório, mas não sem antes ver a expressão quebrada de Josh.

— Não precisava ter dito aquilo — falei assim que começamos a andar pelos corredores do orfanato.

— Você sabe que eu precisava ter dito aquilo a ele. As vezes ele passa dos limites.

— Nós não precisávamos descer no nível dele — o encarei e ele revirou os olhos. — Não precisava meter a família inocente dele, nisso.

— Ele magoou você, Fal. Eu não poderia ignorar aquilo e observar tudo como uma estátua — ele abraçou-me. — Você é minha única família. Sabia disso, não é?

— Sim.

— E quem se mete com você, se mete comigo também.

— Idiota —  sorri na sua direção, mas meu sorriso morreu quando vimos Sra. Rebeca no início do corredor a andar na nossa direção.

Keanu e eu afastamo-nos e paramos de andar enquanto a encarávamos se aproximar.

— Bom dia, Sra. Rebeca — Keanu a cumprimentou com um meio sorriso assim que ela chegou no nosso encontro.

— Para a minha sala. Agora — passou por nós e eu e o meu amigo trocamos olhares assustados. Nos viramos e começamos a seguir-lá em direção a sua sala em silêncio. Ouvindo apenas o som dos seus saltos altos.

Quando chegamos na sua sala ela sentou-se na sua cadeira e Keanu deixou-me sentar na única que ali tinha ficando atrás de mim com as mãos apoiadas levemente nos meus ombros.

— Ontem fui informada que vocês dois saíram as escondidas — foi direto ao assunto. — Sabem que isso é proibido, não é?

— Sim — respondemos em uníssono e em outra ocasião riríamos disso.

— E que o castigo não é nada agradável — adicionou e nós balançamos as nossas cabeça em concordância. — E se tem uma coisa que eu não suporto é que inúteis como você passem por cima das minhas regras — falou num tom calmo demais para quem adora dar castigos. — Para sorte de vocês, hoje apanharam-me num bom dia.



— Então não teremos castigos? — Keanu pergunta e quase dou-lhe uma cotovelada. Sra. Rebeca odeia ser interrompida.

— Claro que terão — ela riu, como se a pergunta tivesse sido tola. — Você, senhor Miller irá ajudar Annette e as outras na cozinha durante uma semana inteira — eu sabia que Keanu nesse momento deveria ter revirado os olhos. — E você, Falyn. É surpresa.

Eu e Keanu nos entreolhamos confusos antes de desviar o olhar para ela.

— Surpresa? — repeti, intrigada. — Porquê?

— Deve estar pronta até às sete da manhã  — ela ignorou a minha pergunta. — E já podem sair.

Ainda confusa me levantei e segui Keanu em direção a saída. Quando ficamos do lado de fora quebrei o silêncio.

— Estou com medo — digo lhe encarando. — Que surpresa será essa?

— Não quero assustar você, mas não deve ser nada boa.

— Isso eu sei. De Sra. Rebeca não podemos esperar nada bom — respondi pensativa.

O que será que ela queria comigo?





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