| PARTE III |

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Na plataforma de embarque do trem não haviam muitas outras pessoas, ao que se podia ver, éramos apenas eu, uma senhora de certa idade e um punhado de gente vestidos como se fossem integrar um coral ou cantata natalina, certeza essa me que veio pou...

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Na plataforma de embarque do trem não haviam muitas outras pessoas, ao que se podia ver, éramos apenas eu, uma senhora de certa idade e um punhado de gente vestidos como se fossem integrar um coral ou cantata natalina, certeza essa me que veio pouco tempo depois, quando começaram a aquecer suas vozes cantando diversas canções sobre amor, gentileza e boas ações, fiquei de longe observando, enquanto pensava que assim como eu, aquelas pessoas muito provavelmente não tinham nada de melhor para fazer em suas vésperas de natal, tirei um cigarro do bolso e tentei acender, mas fui impedido pela grande ventania e a neve que a cada segundo parecia cair mais abundante, o trem chegou pouco tempo depois, e quando finalmente encontrei meu assento, encostando a testa no vidro embaçado da janela, já não sabia se o motivo do frio em minha espinha era o clima, ou a expectativa pelo que quer que a Naomi tivesse decidido sobre nós dois.

O brilho em meu olhar se apagou e praticante larguei as chuteiras no gramado, ela parecia uma estátua de pedra, imóvel, relutando até mesmo em piscar, levei alguns segundos para compreender o que cada palavra daquela significava, e quanto mais eu pensava em tudo o que havia acontecido entre nós, mais eu me sentia traído, furioso e enojado:

- Cê devia ter me dito antes, PORRA! - Rosnei enfurecido, esmurrando a barra de sustentação da arquibancada. - É um homem! Um puta homem caralho! Debaixo disso aí tem um pênis!

- E-eu tentei - gaguejou, na defensiva, abraçando os livros junto ao peito, poças se formando na beirada dos olhos. - Você não aceitou que eu me afastasse, ficou insistindo e falando aquelas coisas todas para mim e...

- Foda-se! - a interrompi, recuando e me afastando às pressas. - Eu vou desmentir tudo, vou dizer a eles que não teve encontro ou beijo algum, e aí eu vou contar para todo mundo por que você nunca deu bola para os garotos!

- Não! Por favor, você não tem esse direito! - Ela insistiu, mas àquela altura eu já estava tomado pela raiva, irredutível, eu havia sido enganado, e pensar em todas as trocas de afeto e no grande desejo que ela havia despertado em mim, me deixava ainda mais pirado, eu a havia beijado, UM OUTRO CARA! E ainda que eu desmentisse a história toda, isso não apagaria os fatos...

Mas eu não fiz como havia dito, não me pergunte o porquê, eu tentei, mas qualquer que fosse o ódio a me mover, parecia que os sentimentos pela Naomi eram ainda maiores, não havia lógica, eu não podia estar afim de um homem travestido de mulher, isso ia contra tudo o que eu acreditava, e ainda assim, no decorrer dos dias, eu me pegava cada vez mais fissurado pela ideia de ter a Naomi, até que eu não aguentei mais, e acabei sucumbindo aos meus próprios desejos, como se nada mais me importasse além de tê-la pra mim a todo o custo:

- E aí... - me aproximei sorrateiramente enquanto ela guardava alguns livros no armário, recostando na porta ao lado e a observando. - - Como que é esse negócio de garota trans? - perguntei.

Ela me ignorou, fazendo eu novamente me sentir como um fantasma, estava claramente chateada comigo, e até mesmo assim ficava bonita:

- Eu, eu não contei nada beleza. - Insisti, agindo rápido e pegando um dos livros que ela deixou escapulir de sua mão:

- Tanto faz. - Respondeu. - Qualquer pessoa que leve isso em conta antes de se envolver comigo não é digna de me ter. Aliás, você me faria um grande favor se saísse por aí contando tudo aos outros meninos, no fim só sobrariam os realmente interessados.

- Eu ainda gosto de você. - Admiti. - E só preciso que me explique como essa coisa toda funciona, por que se quer saber, eu não consigo me afastar de você, Naomi, eu vou falhar todas as vezes que tentar fazer isso.

Agora eu havia tirado a atenção dela dos livros e direcionando a mim. Eu podia perceber que, embora minha fama de transgressor cafajeste influenciasse em sua análise, ela se esforçava para enxergar a verdade em cada palavra dita. Mas não chegou a dizer nada, ao invés disso, permaneceu observando o meu semblante, que denunciava total arrependimento por tudo o que havia dito (e quase feito):

- O último! - Disparei minha súplica, juntando as mãos para dar ênfase ao pedido. - Um terceiro e último encontro, é só o que eu peço, daí a gente conversa e depois disso você quem decide o que vai ser de nós dois, eu prometo que irei aceitar sua escolha, seja ela qual for.

Ela ponderou a questão por uma fração de segundo, e foi como se o mundo a minha volta tivesse parado para ouvir a sua decisão:

- Tem planos para a véspera de Natal? - indagou.

- Não venho tendo faz anos! - admiti, entrando numa espécie de êxtase quase que incontrolável:

- Bearbuks de St. Dalai, às oito, não vá se atrasar.

- Não vou! - falei animado, saindo aos pulos pelo corredor. - Prometo!

Sinto algo estranho, tal como um barulho, o ranger de engrenagens, a neve abundante me impede de ver qualquer coisa que seja do lado de fora, olho para os lados, a única pessoa que consigo avistar está há duas cabines mais afrente, é aí que o trem para de repente, em algum lugar que sem dúvida não é a minha estação, e logo ouvimos ao aviso de que ficaremos parados aqui até a que a nevasca lá fora dê uma trégua.

Minha primeira reação é de pegar o celular e comunicar a Naomi que muito provavelmente irei me atrasar, mas a ausência de sinal manda tudo por água abaixo, batuco o vidro embaçado da janela, aflito e impaciente; irei me atrasar, que maravilha!

...

Vinte minutos se passam e ao que tudo indica ainda iremos permanecer parados por um bom tempo. Já me pendurei no assento e tentei diversos ângulos, contudo o sinal se recusa a dar o ar de sua graça. A essa altura já cogito a ideia de contrariar o que nos foi indicado e deixar o trem, estou me preparando para fazer isso quando ouço vozes conhecidas cantando em sincronia uma música que me é bastante familiar.

Viro de costas e é aí que avisto a Trindade profana, fazendo acrobacias no meio do vagão enquanto entoam o nosso hino de torcida junto com as outras líderes:

- Só pode ser brincadeira... - Digo a mim mesmo, me recusando a acreditar no que meus olhos veem.


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As Quatro Badaladas do Sino de Natal (Romance LGBTQIA+)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora