Não o podia deixar beijar-me.

Não podia o deixar tocar-me.

Não podia ceder.

Não podia o desejar.

Uma batalha interna começou a se desenrolar dentro de mim quando ele sorriu para mim. Era a primeira vez que o via sorrir.

E o seu rosto estava cada vez mais próximo. Ele iria beijar-me. Eu iria o beijar. Nós iríamos nos beijar. Por instinto, quase fechei os olhos, mas não consegui. O queria ver. Queria observar os seus movimentos. E quando as nossas bocas estavam quase a tocar-se ele sussurrou na minha orelha.

— É mais fácil brincar com os outros, não é? — soprou, mas não consegui responder. A minha voz havia sumido. — Não tente brincar comigo, outra vez. Até porque não julgo você atraente o suficiente para despertar algo em mim ou qualquer outro homem — adicionou e então se afastou.

Aquelas palavras soaram como uma espécie de vingança.

Apertei os punhos com força e ignorei todos os insultos que haviam se formado na minha cabeça.

— Não vai falar nada? — replicou, com um sorrisinho estúpido no rosto.

— A única coisa que tenho a dizer é que a beleza é subjetiva. Se não consegue ver beleza em mim, é uma pena.

— Uma pena mesmo.

— Está a fazer-me perder tempo — desconversei. — Leva-me de volta para o orfanato.

Ele soltou o que deveria ser uma risada, mas parecia um gato sendo atropelado por um camião. Ou eu só estivesse a pensar isso por conta do seu comportamento. Como era possível alguém ser tão insuportável? Ele conseguia despertar o pior de você e ainda achar graça.

Bastardo.

Imbecil.

Vagabundo.

Haden era isso e muito mais. Meu Deus do céu, como o odeio.

Depois de uma pequena caminhada no relvado verde e bem cuidado ele abriu a porta do carro para eu poder entrar e sorriu para mim, como se fosse um cavalheiro.

Revirei os olhos enquanto entrava. Ele fechou a porta e coloquei o cinto de segurança. O rapaz ao meu lado fez o mesmo e conduziu. Quando me disponibilizei para o indicar caminhos ele disse que não precisava porque conhecia. Decidi não perguntar como, não queria conversar com ele.

— Não vai mesmo agradecer-me por a ter ajudado? — rompeu com o silêncio.

— Não — menti. Mesmo que, ele se comporte como um verdadeiro verme tinha dever de o agradecer. Ele salvou a minha vida em vários aspetos. Agradecer era o mínimo que podia fazer. — Porque está tão preocupado com isso?

— Não estou preocupado — rebateu, de forma rápida.

Estalei a língua antes de murmurar:

— Obrigada.

— Não foi tão difícil assim — encarou-me por alguns segundos e o mostrei o dedo do meio até que uma lembrança invadiu os meus pensamentos.

— Quando acordei, Liane disse-me que você foi para farmácia comprar remédios para mim porque pensava que eu estava com febre e não vi nenhum saco plástico com você.

Ele demorou alguns segundos para responder.

Depois tornaram-se minutos, até ele suspirar.

— Tive que fazer uma coisa antes e acabei por esquecer-me — murmurou, curto. Deixando claro que não queria prolongar aquele assunto.

Como já sabem, não sou fã de perguntas. Não me agrada ter que responder certas coisas, mas quando era com outras pessoas era diferente. Talvez Haden curtisse ser interrogado.

— Que coisa?

— Fica bonitinha quando está de boca fechada — devolveu e cruzei os braços, irritada.

— Esse seu comportamento é desnecessário — redargui. — Aposto que não tem amigos.

— Que grande detetive você é — debochou. — E se não for pedir muito, cale a boca.

A ideia de abrir a porta do carro e lançar-me nunca pareceu tão tentadora, mas não iria dar esse gosto a ele. Eu não costumava aceitar insultos como os dele de boca fechada. Eu também sabia ser insuportável e prepotente. Por isso, fiz tudo exceto fechar a boca. Comecei a cantarolar uma música qualquer apenas para o incomodar e para o azar dele meu voz era péssima. Tão péssima que nem o autotune poderia melhorar.

— O que é isso? — ele riu. — Alguma espécie de vingança?

O ignorei e continuei a cantar, mas quando voltei os meus olhos para ele parecia que o mesmo divertia-se. E não era isso que eu queria.

— Não precisa encarar-me assim — o seu olhar ainda preso na estrada a nossa frente. — Como se fosse cuspir fogo em mim.

— Você fala como se eu não tivesse motivo. 

Ele parou o carro e notei que já havíamos chegado no orfanato.

— Você tem que aprender a nivelar o seu ódio e não sair por aí tratando mal as pessoas. Como se fosse o dono da razão

— Você julga muito as pessoas — falou. — Já parou para pensar que talvez o problema seja você?

— Eu? — soltei um riso sarcástico. — Desculpa a honestidade, mas não tenho problemas com nada nem ninguém. Sou uma pessoa pacífica.

Ele riu e quase fiz o mesmo, mas apenas limitei-me a o encarar.

— Uma pessoa pacífica com o ego do tamanho do universo — provocou.

— Se eu não me auto elogiar, quem fará por mim mim? — tirei o cinto de segurança. — Exatamente, ninguém.

— É, nesse ponto tem razão.

— Eu sei — dei de ombros e abri a porta do carro pronta para sair, mas me virei para Haden e continuei. — Muito obrigada mesmo pela sua ajuda. Estarei em dívida com você para sempre.

Um silêncio ensurdecedor preencheu o ambiente enquanto eu esperava pela sua resposta.
Ele parecia ocupado demais a encarar-me intensamente. Como no segundo dia que nos esbarramos alguns dias atrás. E isso incomodava-me.

Pigarriei e isso o trouxe de volta.

— Para uma pessoa que disse que precisava voltar para o orfanato com urgência você parece bastante despreocupada agora.

— Foi culpa sua — sai do carro e fechei a porta. Como a janela estava aberta o provoquei. — Espero nunca mais o ver. Até nunca.

Não esperei por sua resposta e o dei as costas. Apesar de estar com medo do que poderia acontecer-me naquele orfanato o sorriso que surgiu no meu rosto não desapareceu.

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NeutroWhere stories live. Discover now