ELE É TODOS NÓS.

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     Ele era apenas mais um no meio daquela multidão, centenas de pessoas caminhando no asfalto quente, seguindo desordenadamente em uma direção que não podia se ver quase nada. A avenida estava tomada por militantes contrários ao governo, gritos de ordem ecoavam de todos os lados, xingamentos e mais xingamentos, lamentos, injúrias, desordem em meio a aparente ordem. Ele apenas sequia o curso da multidão, obedecendo cegamente aquelas pessoas, a sua vontade foi suprimida pela vontade da maioria, suas palavras eram o silêncio diante de tantas palavras sem nexo, sem razão, ele simplesmente foi seguindo as cegas e se sujeitando as declinações alheias, aquela não era sua vontade, mas ele não tinha opção, ele teria que continuar seguindo.
       No horizonte dos altos edifícios o sol foi se retirando, lentamente se arrastando pelas vidraças, e pouco a pouco o brilho intenso foi ficando avermelhado no horizonte, e a noite que espreitava de longe se aproximou, cada vez mais rápido, até que de repente, já não havia mais luz natural, apenas as luzes artificiais, lâmpadas dos postes, das casas, da larga avenida que comportava toda aquela multidão de pessoas que protestavam contra o governo, dizendo fora, dizendo não a corrupção, dizendo não aos roubos, dizendo e dizendo, sem se cansar de repetir, enquanto o pato de plástico amarelo e gigantesco, foi colocado em plena avenida, rodopiava por cima das massas; o pato nada dizia, assim como aquele moço o pato apenas observava a multidão enlouquecida. O moço raquítico e pequeno, que obediência forçadamente a multidão, não sabia como tinha ido patar ali, aliás, ele não tinha a mínima idéia de como foi parar ali.
       As horas foram passando, um telão enorme foi colocado para os manifestantes enlouquecidos acompanharem a votação, e, enlouquecerem ainda mais, a cada voto a favor da saída da presidenta, um novo grito, a cada grito, euforia, mas a cada voto contrário, os mesmos xingamentos, as mesmas pessoas falando injúrias, falando palavras de baixo calão, enquanto aquele moço raquítico de camisa regata e face ossuda, continuava no meio da multidão, era impossível sair naquele momento, empurra daqui, aperta dali, e nada de chegar a lugar algum. No meio da avenida o pato parecia sambar por cima das pessoas, o reflexo das luzes no seu amarelo deu a impressão dele estar vivo, mas era apenas impressão, efeitos do álcool no organismo de muitos, o moço raquítico também havia bebido durante toda aquela manhã, sem nada no estômago, sentiu-se enjoado, quase a ponto de vomitar no meio da multidão, mas ninguém estava nem aí para ele, ninguém nem aí para ninguém aliás.
      Quando a votação finalmente atingiu seu ápice, quando finalmente a maioria dos votantes decidiram contra a presidenta que ainda governava, as pessoas ficaram ainda mais eufóricas, soltava rojões e davam gritos e abraçavam uns aos outros, parecia até a final de um campeonato de futebol. O moço então percebeu que nada daquilo fazia sentido, nenhum dos lados estavam certos, não havia vitoriosos ali, nem os contra a atual forma de governo e tampouco nova proposta de governo, com muita dificuldade o moço foi se retirando do meio da multidão, apertando daqui e dali, e pouco a pouco ele foi saindo e saindo até ver-se livre do meio da algazarra, abrigou-se em um pequeno bar que ficava próximo na esquina de uma rua menor, era o único lugar que ele poderia ficar tranquilo sem ser empurrado por ninguém, o rapaz sentou-se em uma das mesas vazias daquele bar, esperando até que a multidão Fosse embora, ele não pediu nenhuma bebida, ficou em completo silêncio.
      Depois de alguns minutos ali sentado, sem nada dizer, o dono do bar aproximou-se, sentou ao lado do moço, e começou a conversar, disparando palavras e mais palavras, dizendo inúmeros argumentos, irregularidades do ainda atual governo, o moço apenas olhava para o dono do bar sem nada dizer, enquanto o dono do bar gesticulando sem parar acenava para a multidão querendo justificar qualquer coisa injustificável. O dono do bar percebendo que o moço não dizia nada, perguntou-lhe :
       -- Então meu jovem, o que você acha, não vai dizer nada.
       O moço paciente, olhou para o dono do bar e começou a gesticular e a gesticular, balbuciando sons indecifráveis. Foi então que o dono do bar pecebeu que ele era surdo.
Aquele moço não representava nenhum ideal político ou qualquer bandeira partidária, ele na verdade é a representação do povo brasileiro, a maioria desfavorecida da nação, que não tem uma casa para morar, que não tem um hospital descente para lhes socorrer, que não tem um salário digno ou mesmo um bom emprego, esse moço representa muitos de nós, que temos um sonho, e temos poucas chances de realização, temos um ardente desejo de mudança, mas pouca força de realização; aos olhos da classe política desse país, somos todos surdos e mudos. Não importa quem ganhe no final, na verdade somos todos perdedores. Aquele moço sou eu; é você; ele é todos nós.

RETALHOS DA MEMÓRIA. Where stories live. Discover now