102. ACALMAR O CORAÇÃO

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Como estou na Bienal de Minas, este mini capítulo foi tudo o que consegui fazer.
Semana que vem tem mais!
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NA PRIMEIRA SEMANA, Sarah manteve a compostura em público e se ocupou com os muitos assuntos de Durina, renegados entre eles. Quando estava sozinha e fechada em seus aposentos, às vezes chorava; outras vezes, gritava de raiva contra o companheiro que não tinha tentado um contato sequer com Durina. Não sentia fome e precisava ser lembrada de que precisava comer. Não recuperou o peso perdido nos Tronos e redobrou os treinamentos físicos e mentais. Precisava descarregar sua fúria em alguma coisa.

No décimo dia, Rei e Rainha chamaram o espantalho pálido e raivoso para uma conversa a portas fechadas, que podia se resumir a: você vai à superfície falar com ele ou não?

– Não, eu não vou. Nunca mais!

– Sarah, orgulho ferido é um péssimo conselheiro!

– Eu não vou, mãe! Disse que não ia e não vou mesmo! Ele não presta nem pra perguntar a Durina como estou! No mínimo está lá todo ocupado com os dados da nave, da missão, da radiação desconhecida, e nem viu que passaram dez dias! E daí eu apareço querendo conversar?! Não mesmo! Não vou bancar a palhaça arrependida! Mais alguma coisa?!

– Não, Sarah. – A Rainha suspirou. – Vá descansar.

A princesa se transportou num clarão irritado. Seus pais se entreolharam.

– O que vamos fazer?

– Eu vou à superfície verificar o que Enrique está fazendo – decidiu Darah. – Sem que ele saiba que estive lá.

Com a habilidade de Durina em ilusão e hipnose, nada mais simples do que retornar ao Centro Espacial, tomar informações sobre Enrique e, para finalizar, encontrá-lo pessoalmente, sem que ele suspeitasse estar diante da sogra. Darah voltou a Durina muito preocupada.

– Sarah estava certa, Sammal. Ele está ocupado com o trabalho, sem pensar nela ou em Durina. Eu achei que nunca diria isto, mas... Vou a Senira. Talvez Lila tenha alguma ideia.

Lila ouviu tudo e, como Darah, ficou bastante preocupada.

– Eles se gostam, tia, mas são dois tremendos cabeçudos. Sarah ainda não conhece Aldaret. Vou convidá-la pra vir aqui, e daí vejo como ela está de verdade.

– Muito obrigada, Lila.

Lila precisou de três dias de insistência contínua para convencer a prima a conhecer o novo principezinho de Senira.
– Eu sei que você me chamou aqui porque minha mãe pediu – avisou Sarah, logo na chegada. – Não tente me amaciar em relação àquele traste superficiano!

– Eu quero saber como você está depois da brigaçada com o traste superficiano, não quero amaciar você coisa nenhuma! – Lila largou o bebê nos braços de Sarah enquanto Deila providenciava alguns ventos para planar ao lado do irmão, muito feliz com a visita da tia Sarah. – Olhe aí seu novo sobrinho, pra começar!

Sarah estava muito engasgada com Enrique, e Lila não precisou de esforço algum para a prima, magoada, desabafar tudo. Sarah até chorou, mas de raiva. Voltou a Durina mais calma e triste, satisfeita por ao menos ter conseguido falar sobre Enrique sem cair na autocomiseração. Nem percebeu que, logo após seu retorno, sua mãe foi discretamente para Senira.

– Vai mal, tia Darah. – Lila estava séria, compenetrada, e ainda era estranho vê-la assim. – Ela adora Enrique, mas o descaso dele a magoou muito... Tanto o descaso de antes, esquecendo da cerimônia de compromisso, quanto o descaso de agora, com ele se enterrando na ciência superficiana pra não pensar nela.
– A cerimônia de compromisso... – ecoou a Rainha de Durina, baixinho. – Esperava que, depois de tanto tempo, Sarah tivesse... superado.
– Não é coisa de superar, tia. O problema é esquecer e, cada vez que Enrique forçou Sarah a arrastá-lo de volta para o Império, ele pisoteou no mesmo calo: a superfície é mais importante do que o Império, do que Durina e, especialmente, mais importante do que ela, Sarah. Aquele superficiano idiota fez Sarah lembrar do maldito compromisso esquecido vezes demais pra ela superar, e agora fechou as idiotices com chave de ouro. Sarah está magoada demais, com toda a razão, e esconde a mágoa atrás da raiva. Se a gente tentar aproximar os dois agora, só vai dar mais briga.
– Está sugerindo deixar Enrique na superfície?! – espantou-se a Rainha.
– Estou dizendo que, se a gente aproximar os dois agora, a coisa vai piorar, não melhorar. Se pra isso ele tiver que ficar na superfície uns tempos, que fique! E, tia, Sarah precisa ficar bem enquanto ele não volta. Ela precisa se acalmar, se lembrar que comer é bom, precisa lembrar de sorrir de novo. Durina precisa dar este tempo a ela.

As Linhagens eram resistentes a praticamente todos os agentes químicos. Havia a parte útil, que era a imunidade a qualquer tipo de envenenamento. E havia a parte complicada, porque um integrante de Linhagem não podia ser anestesiado e nem, em casos como o de Sarah, receber alguma medicação para resolver problemas que, como aquele, precisavam de um tempo. Como uma das responsabilidades principais de um Palácio era o bem-estar de sua Linhagem, os Palácios podiam suprir estas lacunas: anestesiar tanto o corpo quanto o coração de um integrante de Linhagem, quando necessário.

– Conversei com Sammal sobre isto, Lila... Não temos certeza de que é hora. Sarah é muito jovem, e este tipo de ação do Palácio pode viciar tanto quanto uma droga superficiana.

– Sarah é forte, tia. Não vai usar o Palácio como muleta, não se preocupe. Vai saber a hora de parar. O problema de ser forte é que ela vai aguentar até não poder mais e, quando desabar, vai ser feio. Está na hora, tia, acredite em mim. Ela está sofrendo demais. Se quiserem, usem um meio-termo: peçam a Durina pra acalmar o coração dela, mas não digam que o Palácio está fazendo isto. Deixem ela pensar que é ela mesma. De repente, até faz bem.

– Sim... Talvez esta seja uma alternativa exequível.
Darah retornou à Durina. Ela e o companheiro passaram a noite toda analisando os prós e contras; o dia estava nascendo quando deram ao Palácio a ordem de acalmar o coração ferido da princesa.
***
AO DESPERTAR, Sarah concluiu que a visita à Lila havia realmente ajudado. Tinha sido muito bom desabafar. Seu coração parecia mais... calmo. A raiva contra Enrique ainda era grande, mas não era mais asfixiante. Pela primeira vez desde o retorno da superfície, Sarah fez o desjejum com os pais e surpreendeu-se com sua própria fome. Tratou de assuntos burocráticos na primeira parte da manhã e foi para o treinamento físico em seguida, mas, desta vez, não esqueceu o almoço. Comeu com apetite, acompanhada dos pais.
– Que cansaço... – disse, ocultando o bocejo com a mão. – Parece que não durmo faz um mês!
– Você esteve sob muita pressão nos últimos dias, Sarah. Vá descansar. Eu me encarrego das audiências da tarde.
– Obrigado, pai, valeu. – Ela beijou o pai na face, depois a mãe. – Não sei de onde veio tanto cansaço tão de repente, mas vou aproveitar.
Através de Durina, os Reis logo sentiram a filha mergulhando em um sono muito profundo.
Haviam determinado ao Palácio que fizesse a menor interferência possível no emocional da princesa. O resultado havia sido muito mais rápido e intenso do que suas expectativas.
– Vamos manter por algum tempo... – O Rainha verbalizou o que os dois pensavam. – Algumas semanas, talvez... Até ela estar mais recuperada.
Sammal apenas assentiu, com a expressão fechada e o cenho franzido. Depois de um momento de silêncio, desabafou:
– Quando conheci Enrique, me orgulhei da esplêndida escolha de Sarah... Acreditei que ele seria um grande Rei para Durina. E agora... Isso.
– Todos nós subestimamos a paixão deste superficiano por ciência. Até Sarah.

Olho do FeiticeiroOnde as histórias ganham vida. Descobre agora