120. ENRIQUE

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Enrique está atrapalhando meu ritmo de escrita de todos os jeitos que consegue.

Não está a fim de encarar as consequências do que fez. De novo.

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TUDO QUE ENRIQUE fizera na vida, tinha feito por verdadeira vocação, sem visar fama ou fortuna. No entanto, tanto uma quanto outra haviam se tornado rotina desde a adolescência, e só agora, com seu mundo virado do avesso, Enrique via o quanto havia se acostumado com ambas.

Foi uma semana infernal.

Parecia que nada, absolutamente nada, estava livre do desastre.

A comunidade científica se focava na incrível nave e seus avanços tecnológicos, parabenizando Costa e sua equipe pelos progressos fantásticos. Era como se Enrique não existisse mais. Ou existisse apenas como motivo de risos por ter sido tão escandalosamente ludibriado. Ou alvo de críticas, pois suas atitudes haviam obrigado Costa a agir em segredo. O presidente do mundo aparecia todos os dias ao lado da equipe da base orbital e dos cosmonautas que não temiam radiações desconhecidas. A Terra estava novamente a um passo da conquista do espaço.

As pessoas comuns estavam às gargalhadas com charges do doutor famoso usando moitas como banheiro. Também eram plateia cativa de suas ex-acompanhantes, que se revezavam alegremente em programas e entrevistas. Algumas eram mais incisivas, outras mais picantes, mas todas concordavam que o doutor Morales era egoísta, arrogante, machista, egocêntrico... Uma fraude medíocre e desprezível. Sua vida privada era exposta com detalhes para o planeta inteiro, e ele não era o mocinho das narrações. Bem ao contrário.

Sarah, esquecida pela mídia desde a separação, regressava como a genial matemática da EMAM responsável pelo retorno seguro da missão lunar. De repente, não era mais o famoso doutor Morales que dispensara uma esposa insignificante; era uma mulher mais brilhante do que ele que mandara passear o marido mulherengo e irresponsável. A parte do mulherengo irresponsável ficava bem caracterizada por sua tentativa de orgia na Ilha do Céu, justo no dia do aniversário de Sarah Duran. Que, significativamente, nunca assinara como Sarah Morales.

Não bastasse tudo isso, a mídia escolhera aquela semana para descobrir que a maior parte da fortuna do doutor Morales havia desaparecido. No primeiro momento, Enrique riu e chamou de besteira. No segundo, não achou tanta graça. Em seguida, constatou que era verdade. Nunca precisara se preocupar com posses ou em gerenciar seu patrimônio. Donasô sempre se encarregara. Quando a despedira, entregara a gestão financeira a uma firma bem conceituada, sendo então hábil e legalmente roubado. Muitas de suas patentes mais importantes haviam sido doadas à caridade, e agora Enrique via-se inacreditavelmente precisando se preocupar com dinheiro. Por um lado, era surrealista. Por outro, irritante. Seu tempo passou a ser ocupado por advogados, contadores e instituições financeiras.

Na sexta-feira à noite, sozinho em uma suíte de luxo, o doutor Morales se atirou numa poltrona assim que o último advogado saiu. Bancos não funcionavam nos finais de semana. Teria dois dias de misericordiosa paz.

Pensou em pedir o jantar, tomar um longo banho e aproveitar o silêncio. Acabou por ligar a televisão para o noticiário da noite, sabendo muito bem o que veria: Costa, os cosmonautas e a nave. Junto com eles, o presidente sorrindo sem parar. Alguma ex-acompanhante falando de sua vida, provavelmente. Mais alguma charge odiosa.

O telejornal correspondeu às suas expectativas quase até o encerramento. A notícia de fechamento foi que, de acordo com fontes extremamente confiáveis, o misterioso motivo da falha na missão lunar fora identificado. Os estudos estavam em fase final, devendo ser apresentados em breve ao público e à comunidade científica.

Olho do FeiticeiroOnde as histórias ganham vida. Descobre agora