CAPÍTULO 9: Abelhas

1 0 0
                                    

Delfin a tratou com extrema frieza desde o ocorrido na casa do argentino, sem pausas para fraquezas como a curiosidade, mesmo quando ela o convidou para ajudar com os pneus que Lucas trouxera na camionete de Don Paolo, revelando um lado adulto e frustrante que a amedrontou, no início, quando não imaginava que uma criança fosse capaz de guardar tanta mágoa.

Poderia ter questionado isso, mas de que adiantaria? Era como se ele não conseguisse registrar os acontecimentos daquela semana.

“Era assim que surgiam os ditadores?” Beth costumava pensar, sem seriedade. “Não, ele só está com nojo do que viu. Sei que Del irá me perdoar por ter escondido minhas cicatrizes durante todos esses anos. Tê-las mostrado teria feito com que se sentisse menos diferente de mim? Sei que ele vai me entender, caso eu conte como as consegui. Sei que voltará a ser o meu menino doce e esperto. Mas quando?”

Beth foi para o quintal munida de uma faca de caça e um par de luvas de operário. Teve que rolar os pneus sozinha, esforçando-se e fazendo os músculos dos antebraços saltarem ao cortar e abrir a borracha ao meio, esticando-as em tiras. Na cidade possuíam pararaios, em casas maiores, além de câmeras de segurança, cercas elétricas, vigilantes noturnos, placas de energia solar, caixas d’água. Para famílias sem renda, a necessidade era o que os fazia espertos.

— Não é um enxame de abelhas — disse Beth, num único momento em que Delfin foi até a varanda, abraçar o poste e ficar olhando para um amontoado de nuvens que giravam em torno de si mesmas. — Esse é o som da eletricidade e aquelas nuvens estão carregadas como uma bateria. Se tivermos um pouco de sorte, quem sabe não perca a força? É uma longa distância do México até aqui.

Havia algo de tão seguro em sua voz que o menino quase fez uma pergunta.

Aquelas não eram nuvens de uma tempestade elétrica comum, elas se alimentavam e se fortaleciam com o medo e o remorso dos homens: eram a pesada mão de um deus esquecido entre aquecedores ionosféricos e antenas.

Beth teve que iniciar uma dieta involuntária mais ou menos por aqueles mesmos dias, para o caso de terem o que comer enquanto durasse a tempestade. Enquanto Delfin dormia, ela carregava comida para o abrigo sem ser seguida.

Quando desperto, Delfin limitou-se a uma presença letárgica, de comunicação baseada em gestos de positivo e negativo.

Às vezes, seus olhares se encontravam e Beth fazia questão de sorrir para o filho, mas quando ela entrava na cozinha, para tomar um copo d’água (diziam que diminuía o apetite), ele saia, soltando um ronco alto de desaprovação, sem tomar o cuidado rotineiro de recolher os gizes de cera que estivessem sobre a mesa ou os blocos de montar que estivessem espalhados aos pés do fogão. Desde bebê Delfin tinha um cuidado especial para com os brinquedos, no entanto, seu lado adulto havia acabado com isso também.

— Sabia que a mãe de um garotinho bateu com a cabeça no chão e morreu depois de ter pisado em um bloco como esse? — Ela havia dito, as emoções intactas.

Delfin, em um súbito impulso de raiva e descontrole, havia lançado um olhar insensível para Beth.

Mil vezes pior do que as palavras dele, foi o seu silêncio que a motivou para que desistisse de forçar contato e começasse a evitá-lo sempre que possível. Não queria feri-lo e não queria que ele a ferisse. Tudo o que tinham era um ao outro e por mais que o mundo pudesse agir impiedosamente, pudesse fazer em pedaços até mesmo o coração mais puro, não queria que esse demônio mascarado os golpeasse e os partisse ao meio, fazendo-os cair em lados opostos do tabuleiro.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Apr 12 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Delfin: A História de um Menino Golfinho no Fim do Mundo Where stories live. Discover now