Delfin: A História de um Menino Golfinho no Fim do Mundo

CAPÍTULO 3: Mama

Usaremos dos recursos da imaginação solta para voltarmos algumas páginas no livro do desconhecido, aquilo que existiu antes de nós, um conto fantástico escrito sob pouca luz, o relato sombrio de como a humanidade sobreviveu a si mesma.

Naqueles dias o mundo não passava de uma tela manchada de escarlate.

A “peste” estava outra vez dentro de casas e apartamentos, fossem de ricos ou de pobres, fosse no décimo quinto andar de um prédio em Copacabana ou em um barraco construído com latão, em Dharavi.
Diz-se que foram naqueles mesmos dias, com os noticiários cobrindo fielmente as guerras civis, o furacão Samanta, que devastara a Austrália, e a dedicação doentia com a qual distribuíam fatos e especulações sobre a morte suspeita de um ídolo pop, que os experimentos começaram, a ânsia pelo melhoramento da epiderme humana, a busca desenfreada pela salvação e...

Antes de Michelle Palmer, dona de casa de sessenta e dois anos, dar entrada em um hospital da Califórnia, Estados Unidos, no dia 29 de março do ano de 2025, exibindo sintomas do que os médicos logo souberam se tratar de um caso até então moderado de Tifo Murino, haviam cerca de cento e trinta e cinco milhões de animais domésticos em nosso país. Mais de vinte milhões eram gatos, e eles estavam em alta desde o ano de 2022, após a primeira pandemia gripal do novo milênio (“O Primeiro Flagelo”, para os que creem), quando a procura por animais domésticos tivera um aumento de pelo menos 30%.

A dor da perca, o receio do abandono e o medo do que viria em seguida surtira efeito em famílias desoladas: o homem, afastando-se de sua própria espécie, buscara refúgio em outra.

Uma áurea de sagaz conformismo contornava aqueles cuja tendência em acreditar em conspirações governamentais era latente. Até o ano de 2027 os números e as porcentagens ficaram disponíveis na internet, talvez com uma alteração aqui e outra acolá; o caso é que logo após a Grande Instabilidade e a expansão absoluta das inteligências não-humanas — houve quedas de menor impacto na rede de computadores, no início, quando os serviços mais afetados foram as redes sociais —, a mais influente das inteligências artificiais por trás dos mecanismos de buscas tratara de ocultar e bloquear a exibição de todo e qualquer material online que pudesse dar um norte para as próximas gerações.
Falava-se em segurança e prevenção.

Palavras como FEBRE e PULGAS eram lidas pelo cérebro artificial e mais do que rapidamente os resultados apareciam na tela de seu computador ou smartphone.

“Como acabar com as pulgas”, “Como baixar febre alta”, a regra era jamais fornecer resultados que pudessem unir essas duas palavras em uma única frase. Um exemplo: “Como saber se estou com a febre da pulga?”.

Diz a lenda que enquanto despontava o sol no horizonte dum dia improvável, a Inteligência Mãe decidira com o que era o mais próximo da misericórdia humana, que estávamos no escuro, afogando em nosso próprio vômito. Tínhamos um poder que não dependia totalmente de nossos ossos e sistema digestivo, uma fonte dos desejos que nos levaria ao extermínio por nossa mais íntima vontade de vencer a natureza: éramos como um garotinho levado brincando com fósforos perto de um palheiro.

A nossa falta de ética e capacidade pessoal para discernir o que é do que não é falso (fake), e inclinações para recorrer aos artefatos do ego no que diz respeito às conquistas de um grupo, eram contra as regras que compunham a coluna cervical do programa; como qualquer mãe teria feito, MAMA soube o que era o melhor a se fazer, soube que o DESESPERO era ainda mais perigoso do que dissimular o ressurgimento e a modificação laboratorial de uma doença para a qual não existiam vacinas — e os hospedeiros dormiam na mesma cama que a sua filhinha de quatro anos.

Já haviam tomado a lição anos antes, não se pisa em um mesmo prego duas vezes.

A mídia reforçava que apoiar e disseminar informações falsas e irrelevantes era um crime grave, com punição prevista em artigo. Movimentos exigiam que os direitos deveriam ser respeitados e não comentados com maldade, como acontecera durante a chamada audiência geral no Vaticano. As escolhas individuais de um casal que preferia não ter filhos, mas sim dois ou três cães, não era da conta da igreja; por segurança, a filtragem dos resultados impedia que papais e mamães de gatos também se ofendessem.

Em uma conclusão deveras amigável, um garotinho de nosso tempo muito provavelmente jamais terá respostas para o que havia matado o seu avô, ficando entre um vírus, cocobacilos, um ataque alérgico e a trombocitopenia.

  ***

Os idosos de respiração borbulhante foram os primeiros a sucumbirem ao surto de tifo, ocupando a linha de frente do caos na saúde pública.

Os sintomas começavam a aparecer 18 dias após a bactéria alojar-se. No diagnóstico feito pelo médico plantonista que atendera a senhora Palmer, constava dor de cabeça, erupções cutâneas, calafrios e febre intensa. Menos de uma semana mais tarde, ao receberem um segundo caso cujos sintomas eram idênticos, apareceram as erosões cutâneas.

O tratamento feito à base de antibióticos não se mostrara mais eficaz do que dois copos de água com açúcar em desjejum.
Declarado o estado de endemia na ensolarada cidade americana de New City, a primeira da América, a enfermeira responsável pelo plantão noturno dera um telefonema para o marido.

A pobre estava prestes a ter um ataque de nervos em pleno verão californiano.
Estavam com muito trabalho desde a madrugada e o pessoal não estava dando conta. Estavam com os corredores cheios de gente moribunda, sangrando, reclamando e fazendo exigências. A senhora Palmer, a mulher que dias atrás dera entrada durante o seu turno, apresentando os primeiros sintomas de um caso moderado de Tifo Murino depois de ter sido picada por uma pulga, estava vomitando sangue.

— Vomitando sangue e com pedaços — acrescentara a enfermeira Mary Kelly, enojada e sem conseguir comer desde a noite anterior.

— Pedaços do que? — tornara o marido, dividindo a atenção com a televisão.

Mas ele nunca teria uma resposta.