O céu já estava mudando de cor quando Elizabeth G. bateu à porta da casa de Don, o lugar mais seguro que conhecia para se confiar uma criança, não somente por estar localizada em um bairro descente, de ruas largas e coqueiros que lembravam o litoral, com câmeras de segurança de 360° instaladas no alto dos postes, mas acima de tudo, pela comunidade unida e abrigada embaixo das asas de MAMA — desde que os androides começaram a definitivamente serem usados para as rondas, abordagens e operações que ofereciam risco para a integridade física, o sistema fazia o compartilhamento das imagens e os alertas de atividades suspeitas e identificação de mandatos de prisão por leitura facial em tempo real.
Até onde sabia, todos os vizinhos de Don Paolo eram gente tranquila, que não cobria o rosto, e que convivia em um afetuoso distanciamento; famílias de classe média que haviam aderido ao uso do microchip e por isso mesmo, nada interessados em atos ilegais.
Após um minuto de espera onde Betty pôde contar os vasos de suculentas no peitoril da janela, ouvir o estômago roncar e risadas na casa ao lado, foi Carmen quem abriu.
A mulher estacou, parada ao limiar da porta da frente. Esteve tentando juntar as peças e agora, por fim, estava diante de um enigma revelado; aquele menino sonolento chegando cedo porque “você sabe que tenho assuntos pendentes, Carmen, sabe que o meu trabalho pede por decisões ligeiras...”.—Você — foi tudo o que ela disse, à guisa de cumprimento.
— Lamento não poder ser outra pessoa.
— Ah, não. Sou eu quem lamenta por isso — ela soltou a maçaneta e relaxou os ombros tensos. — Então, a aberração é sua, afinal.
— O nome dele é Delfin. — Betty deu um leve sorriso para ela, e teve a impressão de que a esposa de Don Paolo também havia se abrandado.
— Claro, tentarei não me esquecer de um detalhe tão conveniente.
A mulher tinha envelhecido depressa desde a última vez em que se viram. A aparência gasta de seu rosto era proveniente dos cabelos presos em um coque apertado, terríveis rugas sob os olhos e em volta da boca. No mais, Carmen era assim, uma carapaça de pura severidade para ocultar um coração de ouro.
— Eu trouxe refrescos — mostrou Betty, oferecendo a sacola.
Após breve consideração, a mulher aceitou-a.
— Venha, entre logo de uma vez. O seu filho está dormindo — avisou Carmen, como quem ia adiantando respostas de perguntas previsíveis, apontando a cara para fora e certificando-se do quintal antes de fechar. — Deixe a arma no vaso, ali, ao lado do aparador. Os seus sapatos...?
— Sem nem um pingo de sangue neles — respondeu Betty, tirando a jaqueta de couro e indo até o aparador.
A arma estava presa às costas, no colete tático. Ela escondeu a calibre 12. de cano serrado dentro de um vaso exageradamente bojudo, do tipo que só se via em museus.
— Você fica para o jantar? — perguntou Carmen, espiando dentro da sacola. — Você está magra feito um esqueleto. Continua vivendo na colina?
Betty fez que sim.
— É melhor que passem a noite conosco, não por você, pelo menino. Não quero saber o que esteve fazendo o dia todo e é melhor que ele também não saiba. Nunca. Sei que em uma hora dessas os androides já devem estar alertas e Deus queira que não estejam com uma foto sua por trás daquelas lentes de visão noturna — comentou Carmen, normalmente, enquanto fechava as cortinas da sala. — Tome um banho. Tenho roupas que te servem, lá nos fundos.
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Delfin: A História de um Menino Golfinho no Fim do Mundo
Science FictionEm um futuro terrivelmente possível, conhecemos Elizabeth G., uma mulher solitária, que vive em uma cabana, longe do centro da pequena cidade de Santa Mônica. Reclusa e de poucos amigos, "Beth" vê a própria vida transformar-se após o abandono de uma...