CAPÍTULO 8: Carmen

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O céu já estava mudando de cor quando Elizabeth G. bateu à porta da casa de Don, o lugar mais seguro que conhecia para se confiar uma criança, não somente por estar localizada em um bairro descente, de ruas largas e coqueiros que lembravam o litoral, com câmeras de segurança de 360° instaladas no alto dos postes, mas acima de tudo, pela comunidade unida e abrigada embaixo das asas de MAMA — desde que os androides começaram a definitivamente serem usados para as rondas, abordagens e operações que ofereciam risco para a integridade física, o sistema fazia o compartilhamento das imagens e os alertas de atividades suspeitas e identificação de mandatos de prisão por leitura facial em tempo real. 

Até onde sabia, todos os vizinhos de Don Paolo eram gente tranquila, que não cobria o rosto, e que convivia em um afetuoso distanciamento; famílias de classe média que haviam aderido ao uso do microchip e por isso mesmo, nada interessados em atos ilegais.

Após um minuto de espera onde Betty pôde contar os vasos de suculentas no peitoril da janela, ouvir o estômago roncar e risadas na casa ao lado, foi Carmen quem abriu.
A mulher estacou, parada ao limiar da porta da frente. Esteve tentando juntar as peças e agora, por fim, estava diante de um enigma revelado; aquele menino sonolento chegando cedo porque “você sabe que tenho assuntos pendentes, Carmen, sabe que o meu trabalho pede por decisões ligeiras...”.

—Você — foi tudo o que ela disse, à guisa de cumprimento.

— Lamento não poder ser outra pessoa.

— Ah, não. Sou eu quem lamenta por isso — ela soltou a maçaneta e relaxou os ombros tensos. — Então, a aberração é sua, afinal.

— O nome dele é Delfin. — Betty deu um leve sorriso para ela, e teve a impressão de que a esposa de Don Paolo também havia se abrandado.

— Claro, tentarei não me esquecer de um detalhe tão conveniente.

A mulher tinha envelhecido depressa desde a última vez em que se viram. A aparência gasta de seu rosto era proveniente dos cabelos presos em um coque apertado, terríveis rugas sob os olhos e em volta da boca. No mais, Carmen era assim, uma carapaça de pura severidade para ocultar um coração de ouro.

— Eu trouxe refrescos — mostrou Betty, oferecendo a sacola.

Após breve consideração, a mulher aceitou-a.

— Venha, entre logo de uma vez. O seu filho está dormindo — avisou Carmen, como quem ia adiantando respostas de perguntas previsíveis, apontando a cara para fora e certificando-se do quintal antes de fechar. — Deixe a arma no vaso, ali, ao lado do aparador. Os seus sapatos...?

— Sem nem um pingo de sangue neles — respondeu Betty, tirando a jaqueta de couro e indo até o aparador.

A arma estava presa às costas, no colete tático. Ela escondeu a calibre 12. de cano serrado dentro de um vaso exageradamente bojudo, do tipo que só se via em museus.

— Você fica para o jantar? — perguntou Carmen, espiando dentro da sacola. — Você está magra feito um esqueleto. Continua vivendo na colina?

Betty fez que sim.

— É melhor que passem a noite conosco, não por você, pelo menino. Não quero saber o que esteve fazendo o dia todo e é melhor que ele também não saiba. Nunca. Sei que em uma hora dessas os androides já devem estar alertas e Deus queira que não estejam com uma foto sua por trás daquelas lentes de visão noturna — comentou Carmen, normalmente, enquanto fechava as cortinas da sala. — Tome um banho. Tenho roupas que te servem, lá nos fundos.

Delfin: A História de um Menino Golfinho no Fim do Mundo Where stories live. Discover now