CAPÍTULO 6: Máquina

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"Sabe como ele ganhou esse apelido? Tire esse sorriso irritante dos lábios antes que eu te derrube dessa cadeira, droga. Chamam ele de ‘Ferro’ porque foi como ele matou a esposa grávida", havia declarado Don Paolo, horas antes. "Eu a conhecia, ela entrava por aquela porta todas as manhãs e antes de ir embora, me desejava um excelente dia de trabalho.”

— Então, é pessoal? — perguntou Betty. — Você gostava dela? Mas que danadinho...

Deixando de sorrir, agora um tanto arrependida, já que o argentino perdera o bom humor, Betty aguardou em silêncio que ele continuasse.

Ele bateu nela com uma barra de ferro, ali, do outro lado da rua. Fez isso só porque ela não o havia avisado antes de sair. Esmagou o crânio dela ao ponto de um dos olhos ficarem pendurados”, relatou Don Paolo, fechando o punho com força e mostrando-o para Betty, dando ênfase ao ato brutal que visivelmente o perturbava, isso só de lembrar.

Em seguida, Don ficou mudo atrás do balcão, e foi quando puderam ouvir Delfin rindo, ele que lia revistas aos fundos da loja, sentado em um caixote de laranjas.

Betty levantou os olhos da mão para o rosto do argentino. O pulso do velho estava tremendo, os nós de seus dedos estavam brancos.

— Chame de pessoal, se quiser. Aqueles desgraçados que andam com ele me prenderam aqui dentro, me fizeram ouvi-la gritar enquanto era espancada na frente da minha loja — falou Don Paolo, balançando a cabeça devagar, num devaneio sentimental que Betty nunca tinha visto. — Ele arrancou o olho dela. Chegou o momento de tirarmos algo dele.

  ***

Um sujeito alto, magro feito um poste, de bochechas encovadas e rugas que acumulavam pó, apontou rua acima quando Betty perguntou onde ficava o Bar do Castro. Ela queria dizer aquela espelunca frequentada por malditos bêbados arruaceiros? Era só continuar andando, ela poderia sentir o cheiro das bundas deles quando estivesse perto. Mas também haveria uma placa, caso restassem dúvidas.

Quando Betty agradeceu, o sujeito levantou o chapéu panamá num gesto de educação.

  ***

Fumaça de cigarro e maconha aureolava as lâmpadas que pendiam das vigas de aço, uma verdadeira obra de arte suspensa, entrelaçada, soldada aos pedaços para sustentar as placas de zinco. Por todo o teto do bar se viam aquelas pequenas bolas de luz alaranjada, inertes nas pontas de fios de eletricidade, pairando como que em um pântano nevoento de um pesadelo.

Havia teias de aranha nas juntas das cadeiras e cinzeiros cheios em cima das mesas, duas delas ocupadas por homens feios que viraram o corpo para olhá-la quando Betty subiu os degraus e entrou no bar.

Cheiro de bunda impregnava o ar.
                           
   ***

             Para Castro, o cenário seria o mesmo se em vez de munição 00, uma locomotiva EXPLORER tivesse passado por cima do bando de Ferro, os “Ferrugens”, como se autointitulavam. Ele chegou a fazer comparações enquanto limpavam o chão com um esfregão e varriam a massa encefálica para cima de uma pá de plástico.

Quando criança, Castro e o irmão haviam presenciado um acidente envolvendo uma EXPLORER carregada de grãos. Estavam retornando de um dia de vadiagem nos Escombros, um trajeto diário, e sabiam que a máquina do meio-dia estaria pesada e lenta na subida.

Castro e o irmão, Edgar, conversavam alegremente quando viram o monstro pintado de azul atingir a minivan.
O veículo foi arrastado pela linha férrea num show de faíscas, os pneus entortando e estourando sobre os trilhos, a lataria sendo retorcida em formato de V.

Dois dos ocupantes foram prensados como minhocas nos bancos da frente, as pernas quebras enroscadas embaixo do painel, os estilhaços rasgando a carne devido a movimentação anormal do corpo; os outros dois, o homem e a mulher sobre quem Castro pensava enquanto tentava limpar toda aquela bagunça, foram ejetados dos acentos traseiros quando a porta da direita fora arrancada. Ambos rolaram para fora, sendo arremessados sobre os trilhos antes que pudessem compreender o que estava acontecendo, os dois faróis que se aproximaram e o estrondo de uma buzina dentro de suas cabeças.

A locomotiva EXPLORER arrastou a minivan por vinte metros, e junto foram os corpos que tinham caído entre os metais indistinguíveis.

Quando os bombeiros terminaram de serrar e cortar, para em seguida retirarem a carcaça destruída, o que viram foi a cena mais assustadora que Castro e o irmão jamais esqueceriam: pedaços de ossos e carne humana envolvidos por tecido, farelos com chumaços de cabelos loiros ensanguentados.

A máquina seria sempre imbatível na luta contra o homem.

— Quero duas garrafas de refresco. — A mulher havia rosnado, mirando a calibre 12. entre os olhos assustadiços de Castro.

Ela estava de pé em sua frente, tinha uma bandana ocultando-lhe os traços, e o estava subjugando-o de dentro de uma poça escura de sangue. 

— Leve o que quiser, só não atire em mim, eu imploro. — Castro tremia, encolhido, de mãos levantadas. Não queria cometer o erro de olhar por tempo demais nos olhos dela. — Meu irmão, ele é apenas um retardado. Tenha piedade.

Edgar estava agachado aos pés de Castro, com as duas mãos tapando os ouvidos, e tinha ranho escorrendo pelo nariz.

— O refresco.

— Sim, senhora. O que quiser.

Delfin: A História de um Menino Golfinho no Fim do Mundo Onde as histórias ganham vida. Descobre agora