O Menino Porquinho da Senhora Mei Lin

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Houve um tempo em que todos os homens eram iguais, um tempo este há muito esquecido e desconhecido pelos mais jovens.

Com a fixação de um novo equilíbrio de poder envolvendo as três ordens — militar, econômica e tecnológica —, e a interferência da então maior potência mundial no status quo de Taiwan, isso através de embargos tecnológicos, um conflito fora precipitado em um período marcado pela recessão na geopolítica.

Não me surpreende que você já tenha ouvido partes da história de como surgiram os CELLAS, ou os primeiros Quimeras, que seja; quem sabe já os tenha visto; antes de estourarem na internet os vídeos dos primeiros bebês felinos, com suas orelhas pontudas e olhos que vasculhavam a escuridão com precisão impressionante, filmes e séries de TV já imaginavam como seriam essas adoráveis criaturas. Na realidade, porém, as coisas eram menos fáceis de aceitar.

Faremos um simples exercício de faz-de-conta: imagine que você seja uma mulher chinesa de hábitos saudáveis, uma jovem mãe de primeira viagem chamada Mei Lin. Pode fazer isso? Muito bem. Agora, imagine que você está prestes a dar à luz ao seu primeiro filho, um garotão perfeitamente saudável, isso de acordo com os últimos ultrassons e exames realizados pelo seu médico, o simpático Dr. Wang. Está conseguindo? Perfeito. Agora, evitando o lado racional ou até religioso da coisa, imagine que logo ao dar à luz, momentos em seguida ao ser levada para o quarto, você receba em seus braços uma meiga criaturinha de bochechas rosadas, um tom de cor-de-rosa vívido e áspero, embolada em uma manta azul. É uma cena realmente calorosa, não acha? Suponhamos que seja um costume contar os dedinhos das mãos de todo recém-nascido da família, uma tradição que traz boa sorte para a criança e esperança para os mais velhos. Em um misto de ansiosidade e emoção, você recebe o auxílio de uma enfermeira prestativa para retirar as luvas de seu bebê quando...

Cascos. Uma espécie de unha, dura como cascos, ocupa todo o lugar onde deveria estar a mão.

Em choque, acreditando que ainda está sob o efeito da anestesia, você grita e se recusa a continuar segurando aquela coisinha cor-de-rosa, que embora tenha o rosto, o peso e o cheiro de um recém-nascido, na verdade, se trate de um bebê com fortes traços suínos. E o pior de tudo, aquele é o seu bebê de traços suínos.

Ao passar dos dias, como aconteceu com essa jovem e inexperiente mãe chinesa, você aprenderá a amá-lo, admirá-lo em suas peculiaridades, e dará a sua vida para protegê-lo de todo o mal externo. 

Pode imaginar uma cena parecida? Eu sei que sim. Mas, de todo o seu coração, se esse fosse mesmo o seu bebê, você seria capaz de amá-lo e chamá-lo de seu?

  ***

A jovem senhora Mei Lin, assim como o restante da população mundial, nada sabia sobre um certo laboratório de imaginação fértil localizado em um pequeno e pacato bairro chinês, cercado por restaurantes tradicionais e feiras de rua — foi apenas depois do que aconteceu com a senhora Mei Lin que os olhos do mundo tornaram a voltar-se para o país, mais especificamente para um grupo de cientistas espanhóis, que posteriormente ficara conhecido em todo o planeta como A.N.O, os “Arautos da Nova Ordem”.

Sobre a equipe e seu líder, pouco se soube e pouco é possível saber: com a mesma velocidade com a qual surgiram, vindos de algum bairro periférico de Shangai, desapareceram em subsolo norte-americano, por trás de alguma parede de concreto esverdeado e impenetrável, indo juntar-se aos outros mistérios da civilização moderna.

Não fugiremos da delícia que é o poder da imaginação para nos refugiarmos em teorias macabras, termos científicos e nomenclaturas impronunciáveis; basta saber que tudo começou, aliás, fora descoberto, com o nascimento do filho da senhora Mei Lin.

Retornemos ao ocorrido.  Para isso, serei breve, pois não acredito que compartilhar de tantas informações — a maioria delas incertas, já que não sei mais do que você —, possa alterar o passado. Seja lá o que fizeram para que o filho de Mei Lin tivesse nascido com um minúsculo e delicado rabinho de porco, além de uma pele cor de rosa e algumas vezes mais dura que a de um ser humano “normal”, foi exatamente neste ponto em que o Projeto Quimera ganhara espaço em jornais de todo o mundo, causando extremo alvoroço.

Indo para o lado pessoal, adentrando no seio familiar da família de Mei Lin, correram os boatos de que o pai, o ex-costureiro de uma famosa marca de roupas com inúmeras fábricas espalhadas por toda a Ásia, tenha assinado alguns papéis e aceitado que a esposa e o filho servissem de suporte para o que, na ocasião, não passara de um experimento envolvendo embriões, células humanas e muita cafeína. Homem nenhum, dada a situação econômica em que se encontrava o casal, teria se recusado em atuar naquilo que poderia ser o primeiro passo para a cura de doenças como a dengue e a malária.

Como todo o mundo viria a saber anos mais tarde, havia uma imensa dose de heroísmo e compaixão no gesto de Mei Lin e sua família: a redescoberta da coragem humana para entregar-se ao amor incondicional.

Delfin: A História de um Menino Golfinho no Fim do Mundo Onde as histórias ganham vida. Descobre agora