Capítulo 10: A doce senhora

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Sexta-feira, 22h10.

“Mateus”, “Mateus”.

Os encarnados foram despertos dos seus pensamentos distantes ao ouvirem dona Regina chamando pelo filho, e indo de encontro aos dois. Pareceu uma eternidade até ela chegar perto deles. E não estava sozinha com ela vinha a Márcia, mãe de Marquinhos.

— Como eu vou explicar para a mãe do meu melhor amigo, que ele foi esfaqueado por eu aceitar ser um encarnado?

— Não pense assim, esse não é o momento. Foque apenas nas questões referentes ao mundo carnal.

— Uma coisa eu posso te dizer com certeza: irei acabar com aquele maldito quando eu chegar em casa.

Sabrina preferiu ficar em silêncio, até porque as duas mulheres já estavam bem próximas. Mateus apenas se levantou e deu um forte abraço em Márcia, enquanto Regina foi falar com Sabrina.

— Oh, minha filha! O que foi que houve?

— Um louco chegou no campo e atacou os rapazes durante a partida de futebol.

As duas olharam para Mateus e Márcia abraçados, e chorando. Sabrina teve um aperto no coração ao ver essa cena, e saber que mesmo que indiretamente, tinha culpa pelo ocorrido.

— Sentem-se aqui vocês duas — sugeriu Sabrina indicando a mureta onde estavam sentados ela e Mateus.

Mas Márcia precisava saber como o filho dela estava.

— Alguém já veio falar com vocês sobre o estado de saúde do Marquinhos?

Percebendo que Mateus estava tomado pela emoção, Sabrina rapidamente procurou respondê-la.

— Ainda não. Na verdade, nem os rapazes do resgate saíram lá de dentro da emergência ainda. Mas ele estava com uma aparência boa quando chegou. Tenho certeza que irá ficar logo bom.

Regina então conseguiu fazer Márcia se sentar um pouco, pois tudo indicava que seria uma noite longa.

Então o silêncio reinou absoluto entre os quatro. Ninguém falava um “ai”, e Sabrina, por mais que tenha se incomodado com essa situação, não teve coragem de quebrar o gélido silêncio que pairou sobre eles. Agora ela tinha que pensar com calma o que iria fazer, e impedir que Mateus fizesse alguma besteira. O rapaz ainda estava longe de dominar sua força de encarnado e já estava decidido a confrontar um influenciado demoníaco. Ela tinha que fazer algo, e não podia esperar por muito tempo.  

— Mateus, vamos comprar algo para comer, estou com fome.

Ele apenas se virou e seguiu a encarnada, que já ia à frente. Dobraram à direita e desceram em silêncio a pequena ladeira que dava acesso à saída. Do outro lado da rua tinha uma lanchonete, onde Sabrina tinha intenção de ir, mas Mateus optou pela barraca ao lado da entrada do Hospital.

— Vamos comer algo por aqui mesmo.

Ela não insistiu O sorvete que tinha em mente ficaria para depois.

— Boa noite. O que a senhora tem de gostoso aí? — perguntou a moça para a senhora que estava sentada ao lado da barraca.

— Boa noite, minha filha. Eu tenho joelho de queijo e presunto, hambúrguer de forno e cachorro-quente de forno — respondeu a simpática senhora.

— Eu vou de cachorro-quente. E você, Mateus?

O rapaz foi pego de surpresa pela pergunta, ainda estava com a cabeça em todos os acontecimentos da noite.

— Não sei… Pode ser um joelho, por favor.

A senhora prontamente retirou da estufa os pedidos e os serviu.

Sabrina deu uma mordida e adorou o sabor do que estava comendo.

— Tia, isso está muito gostoso!

A senhora abriu um sorriso com o elogio.

— Muito obrigada! Vão querer beber algo? 

— Uma água sem gás para mim e uma Coca-Cola para ele.

Mateus não ousou contestar, mas preferia Fanta Laranja

Sabrina pagou pelo lanche e eles se distanciaram da barraca, indo se sentar nas cadeiras que a senhora disponibiliza para os seus clientes.

Comeram em silêncio, vendo de longe a pequena televisão que a senhora tinha em sua barraca de salgados. Sabrina ficou pensando como alguém conseguia furtar energia, pois toda a barraca estava ligada clandestinamente por um fio que ia direto a rede no poste, em frente ao maior hospital público da região, e ninguém falava nada? Mas já que estava ali, iria se distrair assistindo um pouco ao noticiário. Mateus estava esperando as notícias de esporte, que geralmente são no final do telejornal, mas antes disso uma reportagem falava sobre o panelaço ocorrido há poucos minutos em vários lugares do país contra o presidente, que a cada dia perdia mais popularidade. Sabrina assistia a tudo com muita atenção, até ser surpreendida por um comentário da senhora da barraca.

— Não adianta nada que façam contra o presidente, ele é o escolhido por Deus para liderar nosso país de volta ao caminho cristão.

Sabrina não era muito preocupada com política, sua vida não permita a ela ter esse luxo, mas achou estranho um comentário desse, vindo de uma senhora, que ao que tudo indicava, era só mais uma esquecida da classe política. Que precisava estar trabalhando até aquela hora vendendo salgados para conseguir sobreviver.

— Ter um homem de Deus na presidência incomoda muita gente. Mas ninguém irá conseguir atrapalhar os planos de quem foi ungido por Deus — continuou a senhora. 

Mas eis que de repente, Mateus quebra o seu silêncio e responde à senhora.

— Tia, a senhora acredita mesmo que esse senhor seja temente a Deus?

A idosa pareceu surpresa com o questionamento apresentado pelo rapaz.

— E por que não seria, meu jovem?

— Acho muito estranho alguém que se diga cristão não seguir os ensinamentos de Cristo. Amar ao próximo como a ti mesmo, que é um dos dois únicos mandamentos de Cristo, ele não quer. Como que um homem que apoia o armamento de toda população, que diz que vai metralhar os opositores e repete o tempo todo que bandido bom é bandido morto, pode ser considerado cristão?

A senhora dava sinais claros de espanto com o que Mateus estava falando.

— Mas ele é um homem de família e defensor da família tradicional.

— Minha senhora, este presidente já teve vários casamentos, toda hora troca para uma esposa mais jovem. E a única família tradicional que ele defende é a dele. Na verdade, ele usa esse discurso para enganar pessoas boas como a senhora. Por exemplo: o que até hoje ele fez efetivamente para ajudar a senhora a colocar comida na mesa da sua família?

— Eu sou velha, e não presto muita atenção nisso, mas tenho certeza que meu neto Kevin saberia te dizer.

Mateus percebeu que não adiantava perder tempo falando sobre esse assunto com a senhora, pois ficou claro que ela se baseava no que falavam para ela, sem ter o mínimo de condições de peneirar o que poderia ser verdade ou mentira. Senso crítico zero.

— Tenho certeza que ele teria, tia. Mas se pergunte se a senhora mereceria estar agora aqui, na porta do hospital a essa hora, vendendo salgados para poder sobreviver; se não seria mais justo estar em casa fazendo algo mais prazeroso, tendo a segurança de uma aposentadoria digna? E antes que alguém fale que a culpa é dos antecessores, pense então por que foi que esse presidente não melhorou nada, e ao invés disso, mexeu na aposentadoria, dificultando ainda mais pessoas como a senhora a terem acesso a esse benefício. 

Dizendo isso ele se levantou, jogou o guardanapo usado e a latinha de refrigerante vazia no lixo.

— Vamos, Sabrina. Quero saber se tem alguma novidade sobre o meu amigo. Tchau!

Sabrina ficou apenas sentada, inerte, olhando para ele enquanto se afastava para entrar no hospital. O que tinha sido aquilo? Ela se perguntava.

O EncarnadoWhere stories live. Discover now