– Me descu...

– Deixa pra agradecer depois, garotão, e você é pesado pra burro, sabia disso?!

Consegui acenar a cabeça positivamente, eu não teria muitas escolhas naquele momento, senti um arrepio percorrer meu corpo, por mais abalado que estivesse eu ainda conhecia aquela sensação, mas pelo visto não era mais o único a conhecer tão bem assim.

– Kate, estamos em suas mãos, viu linda? – Íris se virou e pude ver Kate de relance.

Tá comigo, tá com Deus! – Por alguma razão, pareceu que ela tentou imitar a Thiago, ao menos foi isso que eu entendi.

– Mulher, eu não tô pronta pra ir pro céu ainda não, vê protege a gente direito.

As risadas preencheram minha audição, era animador perceber que eles poderiam manter um pouco de suas alegrias mesmo naquela situação, mas eu não conseguiria rir sem sentir dor, então me esforcei pra manter a animação mínima.

Senti que Íris começou a caminhar, meus olhos não pareciam tão bons pra se manterem abertos, mas não queria simplesmente dormir ou desmaiar, só de fechar meus olhos me fazia relembrar da dor, e isso era desconfortável. Conseguia ouvir em momentos o som do que pareciam ser o impacto de rochas em todas as direções, vez ou outra era como se a terra deslizasse ao meu redor, meu sentido de equilíbrio havia se perdido a muito, não conseguia captar pra que direção estávamos indo ou se eles sabiam onde deveriam ir.

Minha mente parecia que havia se apagado por um instante, voltei a mim assim que ouvi novamente a voz de Íris bradar.

– Tem algo brilhando ali na frente!

Outro lapso de tempo se passou, senti meu corpo ser posto no chão, devo ter resmungado de dor já que ouvi Íris me pedir desculpas, tudo parecia tão confuso, me sentia com tanto sono, tão cansado, e aquilo me parecia tão errado de sentir naquele momento.

– O que aconteceu com vocês? – Reconheci a voz de Noah.

– Depois a gente esclarece tudo, não acho que Thiago vai conseguir usar os poderes de novo depois do estrago que foi nossa batalha. – Laura respondeu, me senti aliviado, se a ouvia significava que todos estavam bem.

– Ei, não me subestime assim, cê me deu um tempinho pra tirar um cochilo, estarei a todo vapor!

– Que ótimo, então vamos por nossa locomotiva pra longe daqui! – Noah já tinha seu tom de voz eufórico de novo.

– E o Matteo? – Kate perguntou, dava pra sentir seu desconforto em lembrar dele.

– Fugiu, e pelo que parece, não foi só ele, né?

– Thiago, deixa isso pra depois, baixe o escudo e faça uma plataforma sobre nossos pés pra tirar a gente daqui. Kate, Noah, vamos cuidar da defesa geral, Íris, você protege o Ethan e Cass. Vamos embora daqui.

Eu conseguia processar bem devagar tudo que acontecia, enquanto estava deitado pude sentir uma mão pousar em meu ombro, meus olhos demoraram um pouco para reconhecer Thiago ali, senti que saíamos do chão, conseguia ouvir as explosões e barulhos diversos ao meu redor, e sentia, aos poucos, que poderia enfim descansar longe de tudo aquilo, e mesmo que ainda me parecesse errado dar lugar ao meu cansaço, uma parcela de mim só queria poder dormir.

E talvez tenha feito isso, pois meus pensamentos viajaram pra longe.

**********

Lembranças vagas percorriam meus pensamentos, algumas delas não passavam de momentos da minha vida, todos eles. Infância e adolescência se misturavam, logo depois os momentos dos últimos meses como Guardião, o primeiro encontro com a Calamidade que me atacara e quase me matou, a visita de Antunes, os dias em treinamento, toda a situação da caverna, o enterro de nosso mestre, as conversas com os demais, o encontro com Noah, o sequestro, os machucados que as pessoas desconhecidas me causavam, a voz de Titânia continuamente dizendo palavras que não conseguia entender, a pressão, a ferida que causei a Noah, nossas lágrimas... e então tudo se apagava.

Não sabia exatamente se estava relembrando de tudo por puro impulso da mente ou se me obrigava a lembrar, mas tudo aquilo me parecia ainda mais errado, grotesco, doloroso e incomodo, tudo parecia não ser o que eu desejaria pra mim, e ainda assim, sentia como se tudo aquilo já fosse parte do que sou, e não me sentiria confortável de recusar tudo, por mais que quisesse recusar, era como se o fardo estivesse começado a se impregnar em mim e me obrigado a aceita-lo... será que eu estava disposto verdadeiramente a aceita-lo?

**********

Mais uma vez ali estava eu, despertando com uma luz forte diante dos meus olhos e sentindo meu corpo doer, novamente não reconhecendo onde estava ou o que havia acontecido, foi nesse momento que pude ouvir algumas palavras no fundo, não pude entender o que era falado, mas não demorou muito pra que a pessoa a quem pertencia a voz viesse até o meu encontro.

– Bom dia, rapaz, como está se sentindo? – Uma moça alta me saudou, seu jaleco branco pareceu reluzir em meus olhos, pisquei algumas vezes.

– Não sei ao certo, acho que sim.

– Sente alguma dor?

– Um desconforto, não sei se chega a ser dor mesmo, é difícil explicar, minha cabeça está meio confusa.

O que não era mentira minha, eu estava mesmo todo confuso.

– Bom, você já está melhor, apesar de estar com muitos ferimentos eles não foram tão severos, isso ajudou um pouco na sua recuperação.

– Eu tô em um hospital, certo? – Perguntei apenas pra tirar as dúvidas, ainda tinha medo em mim.

– Isso mesmo meu rapaz, e se me permite dizer, essa é a segunda vez que você veio aqui, tome cuidado com as encrencas que anda se metendo! – O deja vu apareceu em meus pensamentos, agora eu entendia um pouco da sensação de nostalgia, foi ali que fui atendido após ser atacado pela Calamidade da primeira vez, meus parabéns, eu havia batido um novo recorde.

– Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, acho que no meu caso a reciproca não é verdadeira.

– Um conselho? Tente não permitir a terceira vez, se precisar de algum apoio psicológico temos o contato de alguns profissionais. – Quase respondi a ela que estava mesmo precisando de terapia, mas acho que poderia guardar o comentário, por hora.

– Bem, não sei se é esse o caso, mas muito obrigado.

– Disponha, a propósito, aquele rapaz ali permaneceu aqui todo esse tempo, disse que você não tinha outros parentes próximos então está sendo seu acompanhante. – Virei o rosto pro lado, Noah estava sentado em uma das cadeiras, dormindo.

– Sim, é verdade.

– Pessoas assim são difíceis de encontrar, ele deve se importar muito com você. Bem, estou indo, vou terminar a papelada e quando retornar você já poderá ir.

– Obrigado novamente.

Ela deu um sorriso, acenou a cabeça e saiu da sala, voltei minha atenção pra Noah, quase que em sintonia nossos olhares se encontraram, os meus o procurando e os deles se abrindo para me encarar, todos os tipos de coisas passaram pela minha cabeça em velocidade máxima, sequer cheguei a processar realmente quais foram elas, mas me contentei apenas em olhá-lo sem dizer uma única palavra até que ele mesmo quebrasse o silêncio.

– Sente-se melhor? – Um tanto direto, como sempre, isso me fez rir, era bom saber que a pessoa que gostava ainda estava ali.

– Bom dia pra você também!

– Desculpa, estava preocupado. – Ele se levantou e veio até onde eu estava deitado, pegando uma das minhas mãos e entrelaçando nas suas.

– Agradeço por isso, você não imagina o quanto.

Ficamos novamente em silêncio, eu só queria continuar ali olhando pra ele, queria que durasse pra sempre esse contato, e me senti um completo idiota por estar me comportando daquela forma, respirei fundo e decidi que poderia aproveitar essa sensação, que ela não era idiota nem nada, mas que ela precisava de um outro momento, não aquele, ali algumas coisas precisavam serem acertadas.

– Noah, precisamos conversa...

A Ordem / Fragmentos da Eternidade, Livro 02Where stories live. Discover now