CAPÍTULO 2

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Na manhã seguinte, depois de um banho interrompido pela falta de água, me encontro junto dos meus amigos, sentados na calçada, esperando aparecer uma carne nova. Uma nova vítima.

Torço meus cabelos nas mãos com força, tirando o resto da água dele e um pouco de sabonete. Desde da torrente de água que deu ontem, achei que poderia tomar um banho mais tranquilo hoje.

Trago as pernas para perto do peito, apoio o queixo nos joelhos e brinco com a poeira no chão, desenhando círculos infinitos e a letra ''E''.

Os garotos ao meu lado estão inquietos e conversam sobre se distanciarem mais do nosso bairro para conseguir mais dinheiro. Dois deles já tem 17 anos, todos eles estão tentando ajudar os pais e os irmãos antes que sejam obrigados a sair de casa.

O dia hoje está quente e ensolarado, nada comparado a ontem, que passamos na sombra dos céus. Nós observamos alguns pássaros voando sobre as nossas cabeças, indo em direção a um destino desconhecido, e sei que todos dariam a vida para serem livres assim.

Na frente da nossa rua, as crianças mais novas brincam do jogo do taco, que é o único jogo que está ao nosso alcance em termos todos os objetos. Algumas mães estão do lado de fora, a maioria idosas, com um bebê no colo.

O que mais me entristece, é perceber que outras vidas vão sofrer o que todos nós aqui estamos sofrendo.

— Gente, olha lá. — aponta Gabriel, o mais velho alguns meses e o mais alto também. O nosso líder, por assim dizer.

Nós viramos a atenção para o local em que ele está apontando e quase posso ouvir os fogos de artifícios se estourarem com a nossa comemoração. Um carro preto estaciona perto de uma casa com uma placa de "Vende-se", enquanto outro carro branco maior para atrás dele. A casa em si parece mais uma mansão, com cerca elétrica em volta e uma aparência rústica. Mesmo ficando perto da nossa rua, nunca nos aventuramos até lá.

— Devem ter vindo ver a casa. — deduz Paulo, o mais novo de 15 anos.

— Essa é a nossa chance. — sussurra Gabriel, esperançoso. — Eles são ricos, então vamos ter sorte hoje.

Os três garotos ao redor de mim sorriem e sorrio também, por saber que hoje eles vão ficar bem.

— Vamos lá, Emily. — chama Lian, uma semana mais novo que Gabriel.

Me levanto e fico ao lado deles.

— O que precisam que eu faça? — pergunto.

— O de sempre. — responde Gabriel, sem esconder a excitação de botar as mãos no dinheiro daqueles ricos de merda. — Você é a nossa isca.

Aceno com a cabeça, confiante, e ele me diz para esperar aqui e que quando for a hora ele vai me dizer. Os outros garotos caminham em direção aos carros.

Observo quando um homem de terno sai de dentro do carro preto, dá a volta nele e abre a porta de trás. Dessa vez, outro homem de terno sai, parecendo mais novo que o primeiro. Também está usando terno e um óculos escuros. Ele olha ao redor, fazendo os garotos pararam para conversar, como distração, e depois o jovem vira a atenção para o casal saindo de dentro do carro branco. O homem e a mulher parecem ter 50 anos. Ela está usando um vestido longo vermelho com um chapéu grande de penas e o homem uma calça e camisa social. Eles alisam a roupa quando descem do carro e também olham ao redor da vizinhança.

Consigo enxergar o julgamento nos olhos deles de longe.

As quatro pessoas caminham até a frente da casa e os três garotos continuam seguindo eles. Quando o jovem de terno destranca o cadeado e abre o portão para o casal, fazendo com que entrem na frente, é que o plano começa. Paulo se separa, como o planejado, e vai sozinho até o jovem de terno. Quando ele se aproxima o mais quieto possível para vasculhar os bolsos, o grandão ao lado dele agarra o garoto pelo braço, fazendo com que quase saia do chão. Os outros garotos logo correm para apaziguar a situação, enquanto o jovem de terno acena com a mão para o casal entrar e não se preocupar com nada. Os meninos chegam lá e tentam soltar a mão do grandão do colarinho de Paulo, enquanto o garoto quase finge chorar. Durante a gritaria e os socos dos garotos no homem mais velho, Gabriel empurra com mais força o homem fazendo com que cambaleie, deixando o movimento do garoto atrás no seu bolso passe despercebido.

O outro homem, o mais jovem, tenta apaziguar a situação e manda o grandão soltar Paulo, que daria uma ótima recomendação para uma aula de teatro. As lágrimas já estão caindo dos pequenos e castanhos olhos dele, enquanto funga e seca o rosto molhado na manga suja da roupa.

Gabriel guarda a carteira no bolso, no mesmo momento em que Paulo é largado no chão e finge cambalear na direção do jovem de óculos escuros. Quando ele se mexe para segurar o braço do garoto, impedindo que ele caia, Lian vasculha o bolso da calça e puxa uma carteira de lá.

Os garotos enrolam mais um pouco, enquanto o homem mais novo parece se desculpar pela atitude do outro, e logo já estão caminhando de volta até mim. Lian e Paulo seguem reto até o fim da rua, onde se escondem na casa do garoto mais novo, enquanto Gabriel vem até mim e me entrega a outra carteira que ele guarda no bolso, a velha e desgastada.

— Sabe o que fazer. — ele diz, e aceno com a cabeça. — Quando eu voltar, vou te dar 10 pratas pelo seu aniversário.

Eu consigo dar um sorriso triste.

— É só na semana que vem. — falo, apertando o tecido velho nas minhas mãos.

Ele bagunça o meu cabelo, sorrindo também triste, sabendo que provavelmente jamais vamos nos ver de novo. Por ser o mais velho, Gabriel sempre cuidou de Paulo, Lian e de mim como se fôssemos irmãos de sangue. Eu os considero como a minha família e me dói saber em que caminhos vamos seguir.

— Você merece. — ele sussurra, alisa meu cabelo bagunçado e se vira.

Quando ele está no meio do caminho, vejo o homem grandão apontar um dedo ameaçador para ele e começar a correr em direção ao garoto.

Sorrio, pensando que ele nunca vai conseguir alcançar Gabriel.

Observo de canto quando o homem mais jovem começa a caminhar também, mas dessa vez na minha direção.

Me levanto calmamente, tentando fingir que não o vi, e ando até a frente de casa. Quando chego, abro a carteira e me deparo com uma nota miúda de papel.

— Então você conseguiu o dinheiro. — ouço a voz grossa do meu padrasto à minha frente e ergo minha cabeça.

Ele está caminhando até a frente da rua, até a minha frente, sem camisa e com a calça vestida ao contrário. Na porta da nossa casa, uma mulher vestida com uma camisa dele, com as pernas de fora e descalça, descansa contra a porta enquanto fuma um cigarro.

Não são nem 11 da manhã e ele já está com uma mulher? Posso sentir o nojo me subir a garganta, enquanto só consigo pensar na minha mãe.

— Quanto você tem aí? — ele pergunta, estendendo a mão até a carteira para pegá-la, mas a recolho. Philip me olha como seu acabasse de xingar ele e seu tom de voz aumenta. — Me dá a merda desse dinheiro, garota!

— Eu... não posso. — sussurro, fazendo seus olhos enormes se arregalarem ainda mais.

Qual é o seu problema? — pergunta ele, ao mesmo tempo em que agarra o meu braço a força e pega a carteira. Quando a abre e vê o pouco dinheiro, ele joga ambos na minha direção, fazendo com que a carteira acerte meu peito. — De novo! Você não conseguiu nada de novo!

— Desculpe...

Mal tenho tempo de terminar o pedido ou de inventar algo melhor do que isso, quando um soco me atinge o estômago, me fazendo cair de joelhos com as mãos na barriga. Tento tragar o ar em que me foi tirado, ao mesmo tempo em que tento não chorar. Philip não gosta de me ver chorar ou que eu faça algum barulho, ele diz que preciso aprender a apanhar em silêncio.

— Quanto mais tempo se passa, mais eu penso em te largar em qualquer puteiro! — o tom da voz dele está aumentando e atraindo as pessoas para fora das suas casas.

Elas estão encolhidas contra as portas, chocadas que tudo tenha chegado a esse ponto, mas sabendo que não vai ser a última vez que verão isso de Philip. Já na porta da nossa casa, a mulher fumando cigarro está sorrindo largamente, mostrando os dentes amarelos.

Vejo a perna do meu padrasto vir de novo na minha direção e abraço com força minha barriga, tentando diminuir o impacto.

Mas o golpe não chega até mim.

Meus olhos se arregalam quando vejo outra perna se meter na frente e bloquear o chute com habilidade, fazendo Philip desequilibrar.

Levanto os olhos e observo o jovem parado à minha frente, com as mãos dentro do bolso da calça. De onde estou, posso sentir o cheiro do perfume caro e da roupa nova. Seu terno é de um tom azul-escuro, o que destaca seu cabelo moreno e perfeitamente penteado. Ele tira os óculos, os guarda no bolso da calça e encara Philip com os olhos vazios de qualquer emoção.

— O que pensa que está fazendo? — pergunta, com a voz mais fria que o seu olhar.

— Eu é que deveria te perguntar. — resmunga Philip, se recompondo. — Você não deveria se meter nos assuntos dos outros.

— Não posso ficar parado assistindo enquanto vejo um pai bater em uma filha desse jeito.

Philip ri alto, enquanto a expressão no rosto do jovem à frente dele continua a mesma.

— "Pai"? Acha que eu teria uma filha tão deprimente e patética? — debocha.

— Não, é claro que não. — concorda ele, se virando para me ver ajoelhada no chão. Quando meu olhar encontra o dele, um par de olhos verdes escuros já estão me observando. Ele me avalia de cima a baixo e depois se vira de novo. — Ela é bonita demais para ser do mesmo sangue que o seu.

Ouço algumas pessoas ao nosso redor rirem, enquanto tento processar o que está acontecendo.

Ele me achou bonita?

Minha atenção se volta para Philip, que está vermelho igual um tomate e parece prestes a explodir de raiva pela humilhação que está passando.

— Seu merda... — resmunga.

Observo quando ele corre em direção ao homem bonito, com uma das mãos fechadas em punho, pronto para acertar um soco. Fico esperando que o homem faça algo, se esquive ou se abaixe, mas ele não faz nada. Pelo menos, nada até que Philip esteja perto o bastante. Quando finalmente tenho certeza de que ele vai ganhar um olho roxo, o jovem agarra a mão fechada de Philip e a torce para trás. Meu padrasto solta um grito baixo de dor e depois cai no chão quando o homem passa uma das pernas nas de Philip, que já está cambaleando.

Isso me lembra os golpes de artes marciais que vi na TV um dia.

Fico encarando, ainda ajoelhada contra o solo frio, meu padrasto com a cara no chão, gemendo de dor e tentando se levantar. Enquanto isso, o homem cata a carteira velha e o dinheiro do chão.

— Tudo isso por cinco pratas? — ele sorri, mas um sorriso desprovido de qualquer emoção a não ser nojo. — Seu escroto.

Ele passa por Philip, pisando de propósito em suas costas e braços, para chegar até mim e me entregar a carteira, com o dinheiro já guardado. Enquanto caminha, penso se ele já fez isso antes e o quão rico ele é para parecer tão facilmente confiante.

— Aqui. — ele estende a carteira na minha direção, se agachando para ficarmos na mesma altura, mas não a pego. Parecendo notar que não vou tomar nenhuma iniciativa, ele pega minha mão direita, ainda contra meu estômago, e coloca a carteira sobre a palma aberta. — Prontinho.

A atenção dele e a minha são roubadas quando ouvimos passos rápidos ao nosso lado e vejo o homem, o motorista, correndo até nós.

Percebo com alívio que Gabriel escapou.

O grandão olha do jovem parado na sua frente para o velho no chão.

— O que aconteceu? — pergunta.

O rapaz não responde, apenas se vira de novo na minha direção. O jeito como está me encarando com esses olhos vazios e escuros está me deixando com medo, apesar de ter acabado de salvar a minha vida.

— Você não tem nenhum sentimento familiar por esse porco, tem? — ele questiona.

Olho para Philip no chão, tentando se sentar e segurando o braço machucado.

Com ou sem ele, minha vida nunca teria sido moleza, mas isso não significa que ele deixou tudo mais fácil para mim. Meus dias aqui foram o verdadeiro inferno e Philip era o diabo orquestrando qual a melhor maneira de me derrubar. Quando penso em tudo que ele fez comigo, os dias de surras, o dia em que fiquei trancada com ele naquele quarto nojento, todas as vezes em que o banheiro fedorento e imundo era meu quarto e os insetos viravam meus amigos. Os únicos que sempre me ouviam chorar.

Meus olhos se enchem de água ao lembrar de toda a dor que esse homem me causou, desde o dia em que botou os pés na casa da minha mãe.

Ele não é, e nunca vai ser, minha família.

— Não. — respondo, e o garoto à minha frente sorri satisfeito, enquanto vejo Philip ficar surpreso.

Ele esperava que eu defendesse alguém que me machucou tanto?

— Michael. — diz o jovem de olhos verdes, ainda me encarando.

O grandão de pé ao nosso lado olha para ele.

— Sim, Sr. Prior?

Senhor Prior?

— Livre-se dele. — fala, observando de relance por cima do ombro na direção de Philip.

Meus olhos se arregalam, iguais as do meu padrasto.

Livrar-se dele?

Meu corpo trabalha mais rápido que meu cérebro e agarro com força o braço do Sr. Prior.

— O que você vai fazer com ele?

Ele sorri, enquanto observo Michael ir para cima de Philip e agarrá-lo. Philip se debate e grita para que lhe soltem e até pede ajuda, mas ninguém se move. Assim como nunca se moveram quando era eu que apanhava. Gosto de pensar que estão comemorando por dentro, do mesmo jeito que estou agora. A satisfação que estou sentindo, pensando que eu nunca mais vou ver esse homem asqueroso a minha vida inteira, é libertador, mas não posso deixar de sentir um pouco de culpa.

Percebo que a caminhonete branca já não está mais lá quando Michael carrega Philip, ainda se debatendo nos braços. Ele abre o porta-malas do carro preto e joga meu padrasto lá dentro, fechando logo em seguida.

Olho de volta para frente, quando o Sr. Prior pega a minha mão que continua no seu braço e me ajuda a levantar. Ele me examina de cima a baixo, muito provavelmente julgando o meu estado físico.

— Você está bem? — pergunta, apesar de não haver indícios de que se importe com a minha resposta, independente de qual seja.

— Sim. — respondo e puxo minha mão. Agarro com força a carteira ainda entre meus dedos. — Obrigada.

— Pode agradecer me dando algo pra beber. — ele coloca as próprias mãos dentro do bolso da calça. — Estou morrendo de sede depois desse ocorrido.

— Ah. — sussurro, ao mesmo tempo em que me encara com uma sobrancelha erguida. Eu deveria mesmo fazer algo para agradecer, não é? Só uma água deve bastar. Uma água em troca de se livrar de um corpo e o pensamento me faz arrepiar ao perceber que foi exatamente o que acabou de acontecer. — Ok.

Michael para ao nosso lado, ainda ereto e firme, como se o que acabasse de fazer já tivesse sido feito milhares de vezes. Talvez já. E o mesmo homem que ordenou isso, eu vou levar para dentro de casa.

As pessoas ainda estão nas portas ou nas janelas nos espiando, esperando o próximo capítulo, esperando para ver se algo assim vai acontecer de novo. Até imagino o que estejam pensando: "Talvez eles se livrem dela agora". E isso não me assusta, como achei que deveria. Talvez isso não seja a pior das coisas que pode acontecer comigo.

— Alguém vai ter que me pagar pelo trabalho. — diz uma voz feminina, e vejo a mulher, que antes estava na porta, se aproximar de mim.

Ela me encara de cima a baixo, exatamente como o Sr. Prior fez, e traga uma vez o cigarro, sem se importar em soltar a fumaça na minha direção.

— O quê? — pergunto, confusa.

— O meu trabalho, querida. — ela responde, tragando mais uma vez. — Eu não faço nada de graça e muito menos pra alguém como aquele velho nojento.

A mulher parece tão amargurada quando fala sobre Philip que por um minuto me pego sentindo pena dela e penso que o que ela acabou de falar, vou sentir um dia.

— Você teve sorte de não ter ido com ele. — fala uma voz masculina, agora a do Sr. Prior.

Isso faz com que a prostituta se vire na direção dele, erguendo as sobrancelhas e sorrindo, enquanto o examina com malícia. Ela traga mais uma vez e joga o cigarro fora. Quando começa a caminhar na direção dele, puxa a blusa mais para baixo, mostrando o tamanho do decote, apesar de já estar sem sutiã. Qualquer um consegue ver que ela se interessou muito pelo homem bonito à sua frente.

— Talvez não precisem pagar. — ela fala, parando na frente dele e passando um dedo pelo colarinho branco do terno. A voz dela se torna suave e charmosa, tentando abocanhar mais um cliente, igual uma cobra caça a comida dela. — Faz algum tempo que eu não transo de verdade. Se você me der isso, eu esqueço o pagamento.

O jovem sorri, como se acabasse de ouvir uma piada ruim, mas ainda assim engraçada, e encara a mulher de volta.

— Mesmo que eu fosse o homem mais pobre desse mundo, eu daria um jeito de te pagar, acredite. — ele sorri ainda mais ao ver que a mulher faz uma careta pela sua resposta. O Sr. Prior tira uma das mãos do bolso, puxando uma carteira junto.

Outra carteira?

Devo estar alucinando, tenho certeza de que Lian a pegou.

Quando ele a abre, tanto eu quanto a mulher conseguimos ver o enorme bolo de notas azuis dentro dela, quase saltando para fora. O Sr. Prior tira quatro notas de 100 e as estende para a prostituta.

— Aqui. — quando ela ameaça pegar o dinheiro, mais ansiosa do que nunca, o jovem as recolhe rapidamente. — Mas vai ganhar mais uma nota se sumir dessa casa e voltar pra zona de onde veio, usando só isso. — indica para as roupas dela.

Ela solta um riso e depois bufa, como se isso fosse um absurdo, mas logo em seguida pega o dinheiro e a outra nota que o Sr. Prior prometeu.

— Tem sorte de você ser muito bonito. — ela resmunga e começa a caminhar na direção oposta.

Continua boquiaberta quando ela some, pensando no que foi que deu errado. Tenho certeza que Lian pegou a carteira do bolso de trás desse homem, assim como Gabriel pegou a de Michael. Tanta certeza quanto eu sei que estou respirando agora.

Ainda estou observando o dinheiro quando o Sr. Prior me pega o encarando e sorri. Ele guarda a carteira no bolso da frente, enquanto mantenho a minha vazia contra o peito.

— Podemos agora? — pergunta ele.

Aceno timidamente que sim com a cabeça e caminho em direção à casa.

Tento não travar no meio do caminho ao lembrar da bagunça que a sala vai estar, com as drogas e as roupas espalhadas. Meu coração está batendo tão rápido que tenho medo do Sr. Prior conseguir ouvi-lo.

Quando paro na porta de casa, indico para ele entrar primeiro, enquanto Michael fira parado na entrada, parecendo um guarda.

Paro no meio da cozinha e observo enquanto o garoto está na sala, olhando e examinando cada canto do cômodo. Ele passa o olhar rapidamente pelas roupas no chão e demora mais ao olhar as seringas na mesa de centro. Ao lado dos meus papéis.

Os meus papéis.

O que eles estão fazendo ali?

Antes que ele os pegue, pergunto rapidamente:

— O que você quer beber?

— Tem café? — penso um pouco, olhando ao redor, e balanço a cabeça, negando. — Chá? — nego de novo. — Suco? — e de novo, fazendo ele suspirar alto. — Pode ser água.

Abro o armário procurando por um copo limpo, mas não há nenhum. Caço algum pela pia cheia de louça e lavo bem um que encontro.

Nunca senti vergonha de onde moro porque todas as pessoas que conheço são da mesma classe que eu, mas o Sr. Prior claramente não é um deles. Só de pensar que ele deve estar julgando cada movimento meu ou cada bolor na parede faz com que eu queira me esconder.

Quando caminho até ele para entregar a água, agarro meus papéis em cima da mesa. Ele pega o copo da minha mão, tomando o líquido devagar enquanto mantém o outro braço atrás das costas.

Conto os papéis que estou segurando. Faltam três.

Olho ao redor da sala discretamente e até embaixo da mesinha de vidro, mas não as encontro. Philip deve ter sumido com elas quando foi vasculhar essas. Ele sempre fazia isso para saber se eu estava aprontando algo para fugir de casa, mas ele desistia sempre porque não entendia nada do que estava escrito.

O barulho que o copo de vidro faz ao ser posto sobre a mesinha me chama a atenção. O Sr. Prior empurra o copo na minha direção.

— Era da torneira? — pergunta, se referindo a água.

— Sim. — respondo confusa.

De onde mais poderia ser?

— Desde quando você mora aqui? — questiona, de novo.

— Desde sempre.

Quando o respondo, ele tira a mão atrás das costas, revelando meus papéis entre seus dedos grossos. Ele os examina e me sinto em um pesadelo, onde você está pelado na frente de todos que conhece. Esse homem deve ser o único que já viu minhas anotações e que deve entender algo nelas.

— Então me explique como você sabe fazer isso. — pede, em um tom que mais parece uma ordem.

Tento não me intimidar, mas lembro que se eu quiser correr e fugir, Michael estará bloqueando a porta.

— Eu... vi na TV. — respondo, olhando para baixo.

Estou segurando as folhas com tanta força que tenho medo de rasgá-las.

— Muitas coisas passam na TV. Coisas ainda mais interessantes para alguém da sua idade do que dados de estatísticas.

Dados de estatísticas? É isso que sempre anotei?

Ele dá mais uma olhada e depois estende a mão, pedindo o resto que estou segurando.

— Me deixe ver as outras.

Eu travo.

A última vez que ouvi essa frase, ela foi dita por Philip, que rasgou todas elas quando as entreguei. Tentei juntar todos os pedacinhos, mas não havia salvação. Aquilo havia me ferido mais do que todas as ofensas e palavrões que ele me dizia.

— Eu só quero ver. — insiste o Sr. Prior

Olho para as folhas nas minhas mãos e de volta para ele. Devo parecer um filhote de cachorro de rua acuado em um beco sem saída, mas as entrego, mesmo temendo que ele as destrua.

Ele as observa de novo, folha por folha, número por número. A demora dele ao ver tudo só me deixa ainda mais angustiada.

"Deve estar vendo meus erros", penso. "Deve estar rindo de mim por dentro".

— Minha pergunta é simples e eu espero que a sua resposta também. — diz ele, erguendo o olhar na minha direção. — Por que você anotou isso?

Meu primeiro instinto é dar de ombros.

— Eu não sei. — respondo, e vejo ele suspirar, parecendo quase desapontado. — Mas... — respiro fundo, brincando com os dedos. Não preciso responder, não deveria responder. Mal conheço esse homem e ele está me fazendo mais perguntas do que qualquer pessoa que convivi pelos meus 17 anos. Ele está mais interessado em mim do que as pessoas ao meu redor. E é bom. É bom conversar com alguém que não seja sobre limpar a casa, fazer comida ou até planejar roubo. — Gosto de números. Gosto de matemática. Eu posso colocar os números do jeito que eu quiser, na ordem que eu quiser. Posso fazer com que me deem o resultado que eu quero, posso controlá-los. Eu gosto porque é a única coisa que consigo controlar na minha vida.

O Sr. Prior me encara por alguns segundos, me fazendo ficar vermelha.

Nunca disse nada desse tipo para alguém antes, nunca perguntaram algo de tamanha importância para mim, e me sinto envergonhada por ter a atenção dele ainda em cima de mim.

— Sinceramente, não esperava por essa resposta. — diz ele, estendendo os papéis na minha direção. — Você não tem trabalho, não é?

Um emprego?

A ideia quase me faz sorrir.

Enquanto recolho os papéis de volta para mim, penso o quanto isso seria bom. Ter um horário para começar e terminar, conviver com outras pessoas e conhecer gente nova e receber um salário. Um salário. Para nós, isso é um sonho impossível.

— Não. — respondo.

— E gostaria de ter? — ele está de novo com as mãos no bolso da calça.

Sim! Sim, é o meu sonho. É o meu sonho poder juntar dinheiro e sair daqui, poder viver igual uma pessoa normal, poder viver sem me preocupar se vou conseguir comer no dia seguinte.

— Sim. — meu coração está acelerado e minhas mãos estão começando a suar.

Ele sorri.

— Meu nome é Erick Prior, diretor da Empresa Multinacional Prior. — e estende uma das mãos para mim. — Parabéns, você está contratada.

Uma Nova Chance Where stories live. Discover now