CAPÍTULO 1

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Prefiro viver nas ruas, correr o risco à noite, do que viver em uma casa igual a minha durante o dia.

Meu nome é Emily Rose. Tudo na minha aparência devo agradecer ao meu pai, se um dia eu encontrá-lo. Longos cabelos loiros, olhos castanhos, estatura mediana e um interesse incomum para Cálculo e Álgebra. A única característica que puxei da minha mãe foi meu corpo. Quando eu tinha 15 anos, era mais desenvolvida que a maioria das garotas que moram aqui no bairro. Agora, elas acabaram no mesmo lugar aonde todas sempre são mandadas. O lugar onde minha mãe passa a maior parte do tempo ao invés de ficar em casa.

Se um lugar desses pode ser chamado assim.

A casa em si é velha e torta, literalmente torta. Não sei o que houve com o terreno, mas acho que por causa das chuvas e da má fundação, com o tempo a madeira velha foi pendendo para o lado. Ela se destacaria na nossa rua se fosse a única assim, mas ela não é. Todas as casas aqui têm as mesmas características: madeira velha que range, buracos no teto que fazem com que a casa alague durante as chuvas fortes, quatro pequenos cômodos que se resumem em banheiro, cozinha, quarto e sala. O único quarto da casa são da minha mãe e do meu padrasto. A cozinha é apertada e estreita como a sala e o banheiro está molhado e mofado 24 horas por dia. E, ainda assim, meu padrasto sempre diz as mesmas coisas: "Se você limpasse a casa, ela não seria assim". "É só passar um pano seco no chão do banheiro". "Vá estudar em outro lugar e me deixe assistir televisão".

Meu padrasto se chama Philip. Ele é um homem baixo, quase careca e com uma protuberância grande na barriga. Raramente temos nada para comer e ainda assim não sei como ele pode pesar tanto. Apesar de tudo, ele tem só 30 anos, mas com uma aparência de 50. Os cigarros e a heroína não deixam ele com uma aparência melhor. Ele está sempre usando uma bermuda e camisa regata, mas quando sai de casa, independentemente para onde for, se for até a lata de lixo ou a um bar, ele vai ir de casaco. Me enoja ver as picadas vermelhas no braço dele quando está dentro de casa, mas não posso reclamar. A Última vez em que fiz isso, quando tinha 13 anos, ele me bateu e me trancou no banheiro em um dia de chuva. Ainda lembro o quanto aquele lugar cheirava mal, o barulho das baratas andando por aquele lugar e o frio, o pior de todos. Eu só saí dali na manhã seguinte, quando minha mãe chegou em casa e foi usar o banheiro e me encontrou. Ela tentou brigar com ele, mas sabe que também não pode fazer isso, porque ele faria coisas piores com ela.

Coisas que ele também já fez comigo.

Me abraço, sentindo o frio cortante arrepiar todos os pelos do meu corpo nessa tarde nublada. Hoje vai ser um daqueles dias em que precisaremos colocar baldes espalhados pela casa.

Há duas ruas a minha frente, já na avenida principal, onde tudo parece ser melhor, observo enquanto um ônibus escolar passa por lá, com uma dúzia de crianças fazendo bagunça. 

Mesmo tendo 17 anos agora, nunca fui a uma escola, nem mesmo a pública. Ninguém da vizinhança vai, somos ridicularizados lá pelo nosso jeito e das nossas roupas. Como se isso definisse que tipo de educação iríamos tomar. Mas assim é melhor, a única coisa que conseguimos aprender é quando roubamos os livros daqueles imbecis durante o caminho de casa e tentamos desvendar o que está escrito.

Apesar da educação horrível aqui no bairro, quase todos sabem ler. Graças a uma senhora de 50 anos que nos ensinou quando éramos menores. Ela era muito gentil. Lembro-me de entrar na casa dela e sentir que acabei parando em uma dimensão totalmente diferente. Apesar da casa ainda ter uma fachada meio caída, a organização por dentro era a diferença. A velha senhora tinha água e luz que conseguia pagar e sempre tudo estava disponível lá. Muitas vezes tomei banho naquele lugar, assim como vários dos meus amigos. As cores pintadas naquelas paredes eram alegres e radiantes, um contraste totalmente diferente das nossas casas, que são de um cinza descascado e o verde do bolor. No lanche da tarde, sempre havia pão e queijo e bolacha recheada. O café era melhor que eu já havia tomado em toda a minha vida. Agora aquela casa cheia de vida, que abrigava uma velha senhora e algumas crianças tentando escapar da realidade, estava igual as outras aqui do bairro. Desde que a mulher morreu, quem passou a viver lá foi um homem de 25 anos, que deu a fama ao nosso lugar. Foi lá que a droga começou a se espalhar, assim como a prostituição. De lá, as garotas eram mandadas para o bar de strip e os compradores de drogas não podiam dever nada a eles sem que um corpo novo aparecesse todo dia, como aviso.

Conheço aquele lugar, conheço muito bem. É o lugar de trabalho da minha mãe, Jane. E vai ser o meu quando eu completar 18 anos. É inevitável, todas as garotas vão para lá, se não forem, morrem de fome ou são assassinadas. Assim como os garotos, que passam a traficar ou fazer bicos para que possam viver mais um dia de merda.

Isso é uma merda.

Esse bairro é uma merda.

Minha vida é uma merda.

Me abraço com mais força dessa vez, tentando ignorar a dor dos hematomas roxos pelo meu corpo.

Assim como todos tentam sobreviver depois dos 18, os que continuam aqui também. Quase todos os meus amigos são ladrões e eu também. Precisamos roubar as pessoas, as pessoas depois de duas ruas da nossa, que parecem ter uma vida perfeita, enquanto moram perto de um lugar de merda.

As janelas viradas na nossa direção devem sempre permanecerem fechadas.

Era para eu ter conseguido algum dinheiro hoje, sempre tem alguém novo e distraído, ocupado demais no telefone para perceber que algo desapareceu. Mas sempre há dias em que nenhum de nós não consegue nada, e esse dia foi hoje. 

Deveria ser fácil contar isso a Philip, a sorte nunca está perto quando mais precisamos dela. Mas tudo que eu conseguia ouvir enquanto ele me batia, é que eu precisava pagar ele. Segundo Philip, moro de favor naquele muquifo; como se minha mãe também não ajudasse a manter o casebre com o dinheiro das noites dela. Mas sei porque ele não pega o dinheiro dela, que fica guardado na segunda gaveta da cômoda de roupa no quarto. Minha mãe sempre sabe a quantia exata que guarda e se ele pegasse teria que explicar o porquê. E as únicas razões pela qual ela quer que o dinheiro seja usado são as contas e a comida, que, ironicamente, quase nunca tem em casa. Assim, explicar que ele usaria o dinheiro para comprar mais drogas faria ela surtar de vez. É a única ocasião em que Philip não consegue bater nela, porque, pelo menos dessa maneira, ele deve sentir o mínimo possível de culpa por fazer isso, pois sabe que se fazer também não vai ter onde morar.

Consigo ouvir o barulho da TV das casas em que estou sentada perto. É algum programa de reality show, acho que é da Oprah.

Olho para o horizonte, para ver os últimos vestígios das chamas laranjas do sol desaparecem por detrás dos montes e, mais uma vez, desejo conseguir ficar viva até o dia seguinte para vê-lo.

— Emily! — fecho os olhos ao ouvir o som gutural da voz de Philip me chamar.

Olho para o lado, vendo ele se aproximar com rapidez. Está usando a mesma roupa de sempre, o que sempre me fez duvidar se ele tem outras peças de roupa. Todas têm os buracos sempre no mesmo lugar: quatro na barriga enorme e duas no peito cabeludo e asqueroso.

Meu corpo inteiro se arrepia involuntariamente, quase se soubesse o que está por vir.

— Venha até aqui, sua ratinha! — ele grita, parecendo furioso.

Observo de canto de olho, quando algumas cabeças se sobressaem sobre as janelas, para admirar o espetáculo que está por vir.

Me levanto, sentindo a moleza nas minhas pernas, as dores pelos meus braços e rosto e, como sempre, o frio. Para mim, sempre está frio. As únicas roupas que eu tinha de inverno eram algumas calças jeans e um moletom, que sumiram um dia. Um dia, pelo que me lembro bem, que Philip voltava feliz e aéreo para casa. Agora tudo que tenho para usar são alguns short e camisas de manga. Mesmo que eu tivesse alguma roupa quente, não a usaria, não quando eu sei qual vai ser o propósito delas pelo olhar lento e vagaroso do meu padrasto.

— O que foi? — pergunto, finalmente parando em frente ao enorme e sujo porco que convivo há 16 anos.

A próxima coisa que sinto é a mão dele aberta na minha bochecha esquerda. Em qualquer outro dia, isso não doeria; depois de algum tempo, passei a parar de sentir em algumas situações, simplesmente me desligo, como um robô. Mas agora está doendo, doendo muito mais do que achei que conseguia suportar sem reclamar, mas eu não reclamo. É pior quando o faço.

— Fale direito comigo, sua idiota. — ele aponta o dedo gordo em direção ao meu rosto. — Não basta ser uma inútil que não trabalha, agora vai começar a me desrespeitar? 

Engulo o nó se formando na minha garganta, as lágrimas, e sussurro:

— Sinto muito.

— Vamos logo pra casa. — a mão enorme dele se fecha ao redor do meu braço machucado e ele começa a me puxar em direção a nossa "casa". — Você vai ter que inventar alguma gororoba para mim comer.

Me seguro para não rir.

As únicas coisas que há nos armários de casa são cereais, feijão em lata, leite e as bolinhas pretas que os ratos deixam para trás.

Começo a pensar, refletir, quantas vezes isso já não aconteceu durante a minha vida. A vizinhança sabe como Philip é, como todas as pessoas iguais a ele são, e não se metem no meio, para também não ficarem na merda como eu. E não as culpo, jamais culparia. Elas já tem problemas demais para cuidar e a vida do vizinho que mora ao lado não é da sua conta, certo?

Errado.

Mesmo que não ajudem, isso não os impede de espalharem rumores ou de fazerem fofocas para casa pessoa nova que atravessar a rua.

"Jane não é a mãe daquela garota, ela é adotada".

"Está explicado porque o pai foi embora, com uma filha dessas e namorando uma prostituta não tem quem aguente".

"Eu aposto que Philip é o pai dela, tenho repulsa só quando olho para os dois".

Tento não me importar com o que falam de mim, e com certeza não me importo com o que falam sobre Philip, mas quando o assunto é a minha mãe, é algo que não consigo me controlar. A maioria do pessoal que faz as fofocas, são as senhoras no começo da rua, que perderam os filhos para o tráfico. Sempre tento entender o motivo pelo que fazem isso: tédio, raiva, vingança, prazer. Mas assim como a maioria também tem, pelo menos, uma filha que trabalha no bar no final da rua, queria que não difamassem o nome da minha mãe. Também não me orgulho do que ela faz, assim como não vou me orgulhar do que será um dia o meu destino, mas é a única maneira que ela encontrou de me manter viva.

Um relance de um clarão atravessa o céu e ergo a cabeça para olhar melhor. Uma gota de chuva cai no mesmo lugar em que Philip me bateu e, bem no fundo, penso que os céus choram pelo que acabaram de assistir.

Logo a chuva forte vem, encharcando a mim e a meu padrasto. As únicas almas vivas no meio da rua escura e fria. A água que escorre no meio fio, ainda precisa percorrer um longo caminho até o bueiro mais próximo. Pacotes de bala e restos correm com a correnteza e uma parte minha deseja sumir com elas.

Quando chegamos em casa, Philip se abriga primeiro e depois me puxa para dentro, me colocando em frente aos armários.

— Se vira. — fala, indo em direção ao banheiro.

Observo o lugar.

Sempre que mamãe sai, ou até mesmo eu, tentamos deixar o lugar mais organizado possível. Não há muitos enfeites ou até mesmo muita mobília, mas damos o nosso jeito. Mas, sempre que eu volto da rua, pacotes e garrafas de comida e bebida que não tem em casa aparecem em cima do sofá, ou sempre ao redor dele no chão.

Constantemente, desde o dia em que arrumei esse lugar pela primeira vez, encontro coisas que, assim como não pertencem a essa casa, não pertencem ao guarda-roupa da mamãe. Todas as peças íntimas que encontro, entrego a Philip sem dizer nada. Na primeira vez em que decidir perguntar de quem era ou o porquê dele estar traindo a mamãe, fui trancafiada no mesmo quarto que ele.

Mamãe não sabe. Não sabe o que ele faz com ela ou que já fez comigo, e sei que terei minha língua arrancada se dizer algo.

Suspiro, olhando para o armário aberto na minha frente. Temos arroz hoje. Pego o pequeno pacote nas minhas mãos e coloco uma quantia boa para cozinhar, enquanto tento abrir a lata de feijão com a faca.

Quando meu padrasto sai do banheiro, depois de 40 minutos, a comida está pronta. O arroz cozido está em uma panela e o feijão quente em outra.

Depois que se senta na cadeira, que range com o seu peso, ele começa a comer.

Só isso.

Não tem um ''obrigado'', não tem agradecimentos ou um convite para que eu coma também. Minha vez de jantar é sempre depois dele, isso quando sobra algo para mim. Aprendi que fazer porções maiores de comida, para que eu consiga jantar, também não funciona. Ele só come ainda mais.

Enquanto Philip devora o jantar, recolho meus papéis de estudo de cima da mesa, empurrando as agulhas e injeções para longe e tentando ignorar a calcinha rosa shock jogada ao lado do sofá.

Olho para as minhas anotações, rabiscos e mais rabiscos de números e páginas arrancadas dos livros roubadas. Uma vez enquanto estudava na rua, uma mulher bem arrumada se aproximou de mim, talvez com dó, e olhou para o que eu estava estudando. Ela acariciou meu cabelo molhado e disse: "Um dia você vai conseguir se formar nisso".

Nisso. Mas o que era isso? Sempre fiquei tentada a perguntar para as pessoas ao meu redor o que poderia ser, mas duvido que alguma delas saberia me dizer. É estranho o quão uma coisa desconhecida, que eu nem faço ideia do que seja, pode me atrair tanto.

— Sai da frente da TV! — ouço o familiar tom raivoso na voz de Philip e me desloco para o lado.

Ele bufa e volta a comer. Acho que hoje não é meu dia de jantar.

Caminho até a porta da frente e me sento, abraçando os papéis contra o meu peito. Olho para cima, vendo a chuva cair, sentindo o ar gelado contra o meu corpo bagunçar meus cabelos já embaraçados.

Observo a silhueta na janela a minha frente, do nosso vizinho, a velha Margaret correndo dentro de casa com os baldes e gritando para que seus filhos pequenos a ajudem.

Reparo quando dois jovens se abrigam embaixo de um poste, vestindo moletom e capuz, e parecem ascender algo.

Olho para os papéis nos meus braços cheios de hematomas.

"Um dia você vai se formar nisso".

Eu daria tudo para fugir desse lugar.

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