Capítulo 27

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Thalita encarava o meio-fio tristemente, pensativa.

A linha ininterrupta formada pelo movimento do veículo representava os planos que traçara para sua vida adulta, a qual começara muito bem, já que fora aprovada no curso tão almejado. Entretanto, ao ver a guia ser interrompida por um cruzamento, ela lembrou-se do rosto de Nathália, morta. E toda a perfeição de seu plano dissolveu-se como as primeiras gotas de chuva depois do longo e seco inverno naquela parte do globo onde fora construída a capital do Brasil.

Maldita hora que entrou naquele auditório, concluiu ela, limpando uma lágrima, poderia muito bem ter matado a aula inaugural. Ninguém notaria sua falta mesmo...

Não estar disposta a quebrar regras a levou, em uma bola de neve, a infringir dezenas de outras. No momento em que atravessou aquela porta dupla, sua vida perfeita desceu pelo ralo.

Por que gastou o dinheiro? Se tivesse pago aquela fiança fraudulenta, nada daquilo teria acontecido também. Avisaram no grupo da sala para todos levarem uma quantia específica. Ela preferiu ignorar. Como sempre fazia. Se não concorda, não faça! eis o seu slogan pessoal. A arrogância sempre acima de tudo.

— Não deixe que essa história desanime você... — comentou o homem de branco, como se adivinhasse os pensamentos da garota ao seu lado.

— Como não? — retrucou Thalita, sem forças para discutir ou virar-se para seu interlocutor, preferia manter o olhar na paisagem além da janela, sua voz soava chorosa, áspera, talvez agressiva... — Posso ser presa a qualquer momento!

— Sim, vai — concordou ele. — Mas apenas se desistir...

— Até parece... — ela o encarou, o olhar furioso. — Foi exatamente por não desistir que estou nessa enrascada!

— Pode ser...

— Você não está ajudando! — gritou ela e virou-se novamente. Falar sobre aquilo apenas tornava seu fracasso como pessoa real.

— Desiste então — acrescentou o homem, sua voz gentil contribuía para irritá-la ainda mais — e deixe quem a incriminou solto por aí.

— Ninguém me incriminou! — rosnou Thalita, para si mesma, e acrescentou virando-se para seu interlocutor. — Eu fiz isso... e sozinha!

— É, acho que a superestimei — concluiu, desapontado. Temia ter apostado aquelas fichas de alto valor em um cavalo azarão.

Novamente o único som dentro do veículo foi o do rádio. A emissora iniciava sua programação de notícias. Thalita virou-se para frente intrigada quando a locutora anunciou a descoberta de corpo de acadêmica na câmara fria do prédio da faculdade de medicina. A repórter acrescentou que a polícia ainda investigava o caso e procurava possíveis suspeitos pelo crime. Antes de encerrar, narrou uma breve bibliografia de Nathália, os pais importantes na cidade, e suas conquistas universitárias no último ano. Thalita sequer foi citada pela radialista. Na verdade, os altos mencionavam apenas os dois acadêmicos de medicina como descobridores do cadáver.

Uma reviravolta surpreendente que dava algum tempo a ela, pelo menos até que encontrassem suas impressões digitais nas roupas da defunta.

— Tudo bem — concordou Thalita, quebrando o silêncio de menos de um minuto criado após o motorista desligar o aparelho de som do automóvel, a voz ainda titubeante. — O que preciso fazer?


Thalita atravessou a portaria rapidamente, mal respondendo ao cumprimento do porteiro. Abriu a caixa de correio e pegou as correspondências em seu interior. Já não fazia aquilo há algum tempo.

A maioria não passava de cupons e panfletos com promoções de supermercados e lojas. Mas havia um pacote com o endereço de casa.

A mãe enviara para ela seu exemplar de Auguste Dupin: o primeiro detetive. O livro reúne algumas histórias de Edgar Alan Poe nas quais o protagonista é o detetive icônico. Ela já tinha um exemplar daquele volume, mas era um livro velho, que encontrou em um sebo anos atrás, então, quando viu o novo compilado do personagem, fez o pedido, alguns dias antes de viajar para o Distrito Federal. Já devia ter lido cada uma daquelas histórias dezenas de vezes, conhecia cada uma delas perfeitamente, mesmo assim agradecia imensamente à mãe por ter lhe enviado o novo livro.

Dupin chegara em uma boa hora, já que ela precisava se distrair aquela noite. E ainda, talvez a leitura a ajudasse encontrar uma saída daquela enrascada.

O troteWhere stories live. Discover now