Sem título

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CIÇU! CIÇU!

- O que foi? O que houve?

- Eu sonhei com Bernardo!

- Bernardo Bertrand? Aquele que você disse que escreve livros e essas coisas?

- Sim! Sim! Foi um sonho muito estranho... Eu estava em um lugar muito estranho... Lembro pouca coisa. Lembro que ele disse que já leu meus livros e gostou bastante ou algo assim. Ele falava como se precisasse que eu escrevesse mais.

- Talvez seja um aviso, então escreva.

- Tudo bem... Vou tentar tirar alguma coisa daqui dessa caixa velha. Me deixe em paz agora, vá atormentar as borboletas. Xô! Xô!

- Você sempre acorda assim não é? Vou mesmo. Au revoir.

    Assim que Cícero vai embora me vem algo na mente e logo eu me derramo sobre o papel. Prosa em Jejum.

Sem titulo

    "Eu nunca esperei muito de uma vida que nasceu sem título. Isso mesmo, título. Crianças são postas no mundo e a primeira coisa que pais pensam é: "Que nome ele ou ela terá?", quando na verdade de nada vale um nome, se o título sempre gritou nas histórias que eles mesmos vão ler pra seus tesouros.
    Ok, ok. Você provavelmente não entendeu nada até agora, a não ser, que está lendo uma cartilha, carta, ode, prosa, ou, seja lá como se nomeia, de uma pessoa que gosta de títulos. Pois é gosto mesmo, e aposto que ensino você a gostar comigo.
    Lembro-me um dia minha professora de português, gritando para nós, que nossos rabiscos deveriam ter um propósito, que eles devem girar em torno de uma ideia (confesso retorcer muito a boca e revirar tanto os olhos que por segundos não me deixava tontear). Todos os berros da minha querida pró giravam em torno de nomearmos nossos textinhos minúsculos. Foi assim que ele entrou na minha vida.

    A partir de então eu titulava tudo, receitas de bolo, bilhetes de carinho para os meus pais (ah, como adorava escrevê-los, mais ainda, colori-los), cartinhas de agradecimentos à professora, ou até mesmo pequenos desaforos que ainda hoje me pego rindo das minhas meninices. Enfim, era eu e o mundo titulando para todo lado e eles cresciam junto comigo. Aqui, nessa minúscula e saudosa parte da minha vida, título era o resumo de mim, meu astro principal, era eu.
    O tempo passou, afinal, tudo passa menos o título. Mas eu cresci, a malícia do mundo mostrou que o meu título transparente não era vantajoso em vida real, só nas fábulas mesmo. Comecei a quase esquecer de colocá-los. Fiquei seletiva, não mais os colocava em bilhetes, não mais os colocava nos recados a professora, e nem ela era a mesma da minha alfabetização. Descobri que nesses casos minha mania de titular revelaria, muito rápido meu objetivo, e meus gracejos posteriores seriam desconsiderados e esquecidos.

    Mas o que eu podia fazer, ainda não tinha aprendido a titular de outro jeito. 

    Mais uma carga de tempo passa pelas minhas pupilas, solas de sapato, vestidos... Foi aqui que aprendi a lição mais importante de redação, e até da vida. "É preciso cativar". Não importa o que você faça, as três primeiras linhas de sua redação serão primordiais para que haja um interesse do leitor a continuar a leitura. Seu título nunca deverá estar presente se não houver suspense, ele deve se esconder se não há mistério em suas entrelinhas, ele acima de tudo deve jogar.

    Acho que agora você me entendeu, hein?! 

    Sabe que nenhuma vida necessariamente precisa de título, mas era necessário chamar sua atenção para uma prosa meio desajeitada que me dei ao prazer de escrever. Cabeça cheia, queira me perdoar se gastei o seu tempo de forma inapropriada. Minha intenção não passou de bons olhos e atenção, afinal que loucura é essa de titular a vida?!
Apesar da minha confusão verbal ela ainda não é de todo utópica, todos nós realmente somos uma história, mas não seriam histórias tão interessantes de lê se seus títulos fossem apenas: "A história de Maria.".

    Quem gostaria de ler a história de Maria havendo tantas Marias espalhadas pelo mundo e tantos problemas próprios? Lembro que até Machado de Assis ao criar a história de Brás Cubas se preocupou em manter seu costumeiro ceticismo no ar, nomeando não de "A História de Brás Cubas", mas de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", e até quando ficou muito próximo de me contradizer, ainda assim não o fez: " – Quem pode ser o infeliz Dom Casmurro?! Não seria tão estranho assim ficar ranzinza com um nome desses. E Quincas Borba? Valha-me!".
    Enfim, vou acabar por aqui. Bicho estranho é o escritor, borbulhando ideias loucas em sua mente, quase se deixa passar despercebido que texto longo ninguém mais lê. Um livro ou dois quem sabe, mas uma simples prosa que fala de títulos? Não... Pois então, esse deixarei sem título. Só para que meu próprio pulso se contradiga às minhas ideias.
    Até mais, meu estimado dono da história mais fascinante que meus ouvidos ou olhos poderão escutar."

- Miranda, Camila de Compostella ( CamilaMFDuarte )

    Acho que ao menos dessa vez não vão aceitar essa prosa, vou levar pro Clube das Letras hoje mesmo.

    Assim que me arrumo pra sair, fico lembrando do sonho. Por que aquilo aconteceu? Será que ele de alguma forma está precisando de mim? Mas onde é que esse homem mora, meu Deus!? Só o vi uma vez na capa em um jornal e nada mais. A minha mente não pode ter criado isso.

10:00 am – Saio em direção ao clube

    Logo quando saio de casa vejo a minha amiga de cabelos divinos (Se inveja matasse...). Ela está sentada na parte de fora de uma lanchonete. Eh... Tenho que cumprimentá-la, serei rápida.

- Olá, senhorita Elisa!

    Ela termina de engolir algo e me abraça.

- Como vai?

- Bem! Estou levando um trabalho para o Clube das Letras aqui da cidade. O que faz aqui a esta hora? Não trabalha mais com os Bertrand?

- Trabalho sim! Tive uma função especial hoje e estou na rua desde cedo! Uma labuta!

- Deve ter sido difícil andar de um lado pro outro até agora. Poderia me fazer um favor?

- Claro! Depois posso lhe pedir um também? Talvez você possa me ajudar.

- Tudo bem por mim. Poderia ler isso e me dizer o que acha? É pro Clube que falei, se estiver bom, entra pro livro de escritos da cidade.

- Dona Miranda, eu...

- É coisa rápida! Tome.

Assim que ela pegou o papel pareceu procurar pro algo, não entendi bem, mas não me preocupei.

- Você é escritora, Miranda?...

    O rosto dela me pareceu um pouco confuso, mas como eu estava com pressa não liguei tanto e esperei ela olhar o papel. Já é quase hora do almoço, se eu me demorar não chego ao clube em tempo e então tenho que fazer esse trajeto todo de novo!

   Qualquer um perceberia que ela não leu o que tinha no papel, simplesmente foi até as últimas linhas e ficou ali por um tempo. Eu realmente não entendi nada. De repente ela jogou o papel de lado e isso me irritou um pouco.

- Ei! Gritei

- É você!!

-Você jogou o papel no chão, por que fez isso!?

- Meu patrão Bernardo Bertrand me incubiu de te procurar! Por isso estou na rua desde cedo!

    Então o sonho era real... Ele precisa de mim... Aquilo não foi só um sonho, há algo aqui que está se tornando grande e eu posso sentir isso. Como este homem me encontrou nos sonhos? É magia? Eu tenho que me decidir e logo.

    Em poucos segundos o sangue voltou ao meu corpo, em mais alguns segundos tomo forças de onde não sei e então me decido. Isso precisa ser resolvido e será agora.

- Não precisa dizer mais nada. Me leve até Bernardo.

O Portador de memórias - Para jovens idososOnde as histórias ganham vida. Descobre agora