Vida

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    Assim que Miranda me deu a notícia da morte de Elisa, meu cérebro não soube escolher a reação que poderia ter, então não teve nenhuma. Se fez assim:

- Silêncio

- Uma bicicleta na rua

- Pingos de chuva

    Neste momento até quem escreve esse livro sente a dor do silêncio. Essa vontade de virar pó e lá mesmo ficar.

- Miranda em pé na porta

- Eu em silêncio

- Uma morte

    De algum modo o meu rosto se manteve pleno, os olhos denunciavam, mas não se derramaram, não consigo chorar, isso faz a dor se multiplicar em nível exponencial dentro de mim. Esse é um dos motivos pelo qual eu escolhi ser escritor.

- Não entendo -  Digo seco, limpo, em um tom polido e reto

- Algumas testemunhas disseram que ela atravessou a rua com as mãos na cabeça, parecia sentir fortes dores. O dono do automóvel não teve como desviar. Ela teve várias paradas cardíacas e os médicos disseram que ela não sobreviveu – Disse ela enquanto eu voltava para o lugar onde eu estava.

    Sentei na poltrona e Miranda ficou em pé. Vi que seus olhos estavam se derramando de uma forma dura, ela não queria chorar. Eu a abracei e guardei seu rosto no meu peito, guardei também seu peito no meu. Ela aceitou.

- Eu sabia que algo poderia acontecer, mas nunca imaginei isso. Eu deveria ter cuidado dela. Foi minha culpa. – Disse de olhos fechados, meu peito doía tanto que mal cabia Miranda lá dentro. A dor tomava tudo por dentro. A tristeza é assim, desengonçada, esbarra em tudo, já nasce grande e espaçosa.

- Não foi sua culpa, foi nossa. – Disse ela com a voz cortada

    Ela me contou que a minha tia Izabelli já tinha cuidado de tudo, que eu não precisaria me preocupar com as despesas do enterro ou com dinheiro. Fomos para a cozinha pra beber água. Disse á Miranda que deveria voltar pra casa. O enterro será amanhã e iremos quando for de noite e não tiver mais ninguém no cemitério. Ela foi embora da minha casa, e eu fui embora de mim.

    Deitei no chão da sala olhando pro teto, mas dessa vez sóbrio. Não tinha vontade de pensar e muito menos de escrever, senti que naquele momento eu poderia dar uma parte do meu corpo pra conseguir chorar. Não ligaria em dar essa parte de mim, a dor iria consumir tudo mesmo, não ligaria.

    Olho para o lado e Cecília está alí novamente sentada do meu lado com as pernas cruzadas, seu rosto queria me consolar e seus olhos também.

- Você também gostava dela, não gostava?

Ela disse que sim com o rosto e se deitou olhado para o teto assim como eu.

- O que devo fazer? – Perguntei me sentando e olhando pra ela.

Ela respondeu mexendo os lábios, o som que saia da sua boca era estranho... Eu não consegui entender, mas seus lábios claramente diziam:

"Viva"

    Neste momento não pensei, o silêncio dominou a mim, a casa, meu mundo, todos eles. Se fez presente a vontade de viver. Não vou deixar Elisa morrer novamente, não aqui dentro. Eu nunca vou esquecer o seu jogo do contente, a alma pura, os cabelos, os olhos pretos profundos de alegria. Olhei mais para Cecília e ela novamente se sentou, estamos cara a cara. Seus olhos agora parecem mais aliviados porque os meus também estão.

- Obrigado – Digo com um leve sorriso no canto da boca, desses sorrisos que saem sem se perceber

    Ela se levantou, veio até meu rosto e me deu um beijo na testa, andou pelo corredor e foi até o meu quarto. Eu a segui com os olhos. Naquele momento Cecília me fez lembrar do que eu mesmo tinha dito. Mesmo que Cecília (Caecilius) signifique "caecus - Cega, termo designado as pessoas sábias na Roma antiga", ela enxergou muito mais que eu. Elisa foi uma flor que Deus arrancou pra guardar em vaso. Me sinto feliz por ela.

    Me levanto e a sigo até o meu quarto, ela está deitada na cama. Eu pego um livro "Deus protege os que amam" J. M. Simmel, e deixo do seu lado na cama.

- Espero que goste.

Ela ri, mas continua deitada e com os olhos fechados.

    Pego uma mala e encho com algumas roupas, alguns livros, caneta e papéis. Vou até o quarto de tia Izabelli, ela acabou de voltar do centro. Fico parado na porta com a mala no chão. Tenho um chapéu em mãos.

- O que você está pensando em fazer, Bernardo? – Diz ela com os olhos acesos

- A senhora confia em mim?

- Me diga o que vai fazer.

- Tenho que ir a um lugar. Não posso mais fugir de mim. Acredite, eu voltarei. Tenho certeza que ficarei bem.

Ela me abraçou chorando, eu a consolei e pedi para ligar para um motorista de confiança. Coloquei o chapéu a tampar meu rosto.

- Pelo menos me diga para onde vai. – Disse ela limpando as lágrimas

    Peguei um pedaço de papel e anotei o local, entreguei à ela e mais uma vez a abracei. O Carro chegou. Dei um bilhete ao motorista e logo cheguei ao local. Coloquei minha mala na frente da porta da casa e bati, tirei o chapéu e esperei atender.

Miranda abriu a porta:

- Bernardo? – Disse arregalando os olhos

- Posso ficar aqui por um tempo?

O Portador de memórias - Para jovens idososOnde as histórias ganham vida. Descobre agora