E o amanhã, quem dirá?

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    Enquanto Miranda e Celina ficam conversando pela casa, vou até a porta que fica entre a sala e o jardim e me sento no degrau. Assim que me sento, o ar teima em querer sair por inteiro, é mais uma dessas situações que o corpo condena que está pesando demais e a mente nem se fala... Então respirei fundo e o oxigênio pareceu pesado, o tempo, a época e até as núvens parecem pesadas; de fato estão. É tempo de barulhos infinitos dentro da cabeça, tempo de suspiros profundos que resfriam as almas vazias. Tudo o que está acontecendo agora é parte de algo muito maior, maior até do que eu posso imaginar.

    Essa vinda de Celina me parece estranha, melhor, ela me parece estranha por inteiro. O problema não é mentir, é o jeito com que se faz isso. O problema da mentira é o costume, o comodismo, a falta de percepção do ato, enfim, eu sei que ela tem capacidade pra fazer isso de forma natural. Mas ao mesmo tempo penso que ela pode estar dizendo a verdade, afinal ela também é uma Portadora.

    No momento em que o oxigênio sufocava Bernardo, Cecília estava sentada do lado dele, e ele nem percebeu. Ela ficou olhando para ele e vendo que ele não a tinha percebido alí, contraiu os lábios, andou até ficar na frente dele e começou a fazer caretas. Parece que funcionou, ele começou a rir, não acho que ele tenha entendido alguma coisa na intenção dela, deve ter pensado que foi só mais uma brincadeira, mas ela realmente gosta dele de uma forma diferente, parece que é mais que sangue. Creio que Cecília sabe muito mais de Celina, que Miranda sobre a própria mãe.

- Por que está fazendo isso? – Perguntei enquanto ria das caretas que ela estava fazendo.

    Cecília anda até mais perto de mim, estica os braços até o meu rosto e, colocando os dois dedos indicadores nas extremidades da minha boca, me coloca um sorriso gigante no rosto. Neste momento ela também sorriu. Eu sorri, a lua sorriu e o sol escondido dentro de nós também sorriu.

    O que eu poderia dizer a ela? Vez ou outra eu me pego viajando entre coisas sem sentido e querendo ou não, me submeto ao pessimismo. Cecília me fez feliz agora, a verdade é que a felicidade sempre esteve dentro de mim, e foi Cecília junto a sua linda mãe que me fizeram perceber isso.

Neste dia percebi que amor não se agradece, amor se retribui.

    Passei as costas da minha mão sobre o rosto de Cecília e senti sua bochecha puxar um sorriso.

- Eu queria ter sido seu pai há muito mais tempo. – As palavras saltaram da minha boca.

    Ela sorriu sem mostrar os dentes, coisa de criança, coisa linda de criança. Senti que aquele não era o momento pra pensar em coisas ruins, sendo que eu tinha toda a felicidade dentro de um só coração, do meu. Peguei a mão de Cecília e pedi pra ela sentar do meu lado, ela encostou o seu rosto no meu braço e ali mesmo ficou.

- Sabia que o sol não se põe quando anoitece?

    Ela negou com a cabeça e ficou me olhando com aqueles olhos profundos e castanhos, ela é pura alma.

- Pois bem, mocinha, saiba que o sol não se põe ao entardecer. Ele se esconde. Ele não brilha mais porque não há necessidade, ele fica à espreita esperando a lua estar soberana. Contemplá-la é seu melhor passa-tempo, admirá-la, perceber que o seu brilho não é notado pelo calor ou pela prepotência, mas sim pela simplicidade. Ela é meiga e atordoante, formosa e discreta, enfim... Meiga e cruel, o sol a namora à distância, atrás do horizonte onde as últimas nuvens o fazem companhia e o consolam, afinal, ela é apaixonante, é uma mulher. Um amor impossível, que apenas existe entre aspas.

    Cecília ficou me olhando e seus olhos se abriram, de repente ela se sentou ereta e começou a bater palmas e, qual foi a minha reação? Eu só ri, foi tudo o que eu consegui fazer.

- Gostou? – Perguntei enquanto ria

    Ela concordou, tinha os olhos bem acessos, parece que gostava de histórias ou palavras bonitas. Deve ter puxado muita coisa da mãe. Ainda sentado me encostei na porta e aproveitei, já que ela gosta de ouvir, então só preciso falar, pensei.

- Meu pai me contava essas histórias e saia muita coisa da cabeça dele, sabe? Até hoje não sei de onde ele tirava tudo isso. Tinha uma história de um homem em uma fazenda, ele contava que um dia tinha vários homens atrás dele –Clima de suspense- e todos esses homens estavam à cavalo. Esse herói também estava montado, mas o cavalo dele não era tão rápido. Como de repente o nosso herói percebe que seu cabalo estava correndo devagar e que ele iria ser pego –Cecília põe as mãos no rosto tampando os olhos- ... Sabe o que ele fez? –Pausa dramática- Ele desceu do cavalo, botou o cavalo nas costas e correu muito mais rápido que antes.

Cecília começou a rir sem parar.

- É, nem todas as histórias do velho Gustavo tinham muito sentido – Disse rindo

- Bernardo! Socorro! – Miranda gritou, alguma coisa muito grave está acontecendo

    Saí correndo por cima de tudo e quando cheguei na cozinha, Celina estava estirada no chão enquanto Miranda está aos prantos dando tapas no seu rosto.

O Portador de memórias - Para jovens idososOnde as histórias ganham vida. Descobre agora