006 - Decisões

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Mais duas semanas se havia passado. O azul do céu já não era um azul vívido como quando Charlotte ali chegara. Agora o azul desvanecia-se, camuflando as nuvens, que vagueavam rápido por este, devido à aragem que já começava a correr, forte e fria. Além destes pequenos detalhes, também se verificava uma discreta mudança na rapariga britânica. Charlotte estava cada vez melhor na sua pronúncia, ganhara mais à vontade para com a língua estrangeira e, além disso, sentia-se mais segura de que esta mudança havia sido pelo melhor.

Os seus pais de vez em quando ligavam-lhe, interessados na sua nova vida e no momento novo que ela estava a vivenciar, mas a verdade é que nem sempre lhe apetecia falar com eles. A relação com os seus pais nunca fora um tema fácil de compreender, principalmente para quem está de fora, e, para Charlotte, quanto menos fosse mencionado melhor. Ela fechava certas memorias a sete chaves, evitando sempre ao máximo pensar na situação. Para ela, estava tudo arrumado no passado, tendo, por isso, de criar uma realidade fictícia de que tudo era perfeito sempre que chegava o momento de comunicar com eles. Durante esse tempo, tudo estava bem e eles eram os melhores pais do mundo; pelo menos, até a chamada cair.

Quando viu no seu ecrã bloqueado duas tentativas de chamada perdida apenas suspirou. O seu olhar procurara algum conforto à sua volta e os seus olhos pararam quando encontraram o quadro, pendurando no corredor que fazia a separação dos dois quartos. Os seus pensamentos pesados e turbulentos transformaram-se em algo bom com a memoria daquela noite tão desfasada e vibrante. Agora não era momento de falar com eles. Tinha de se concentrar.

Lucifer aparece na frente da rapariga, mas quando repara na sua presença logo se afasta para o outro lado da sala, onde se deita sem a olhar. Charlotte realmente não gostava daquele animal. Cuidadosamente, mexeu a colher do seu café instantâneo e observou-a rodopiar, quase como se sincronizada com a música de fundo. Doris Day fazia soar a sua voz naquela sala calma, preenchendo o coração da rapariga cujos pensamentos estavam longe de ali estar. A música "Again", sempre a faziam desejar uma vida de cinema irreal, na qual existe tudo à exceção de trabalhos e compromissos. O seu olhar, ainda que não estivesse atento, focava no ecrã do seu computador, com um projeto por terminar.

- O teu gosto musical não deixa de me espantar. – Thomás disse, sobressaltando aquele corpo sonhador, quase fazendo o café derramar. A sua reação desencadeou uma pequena risada por parte do francês. – Desculpa, Char, não te queria assustar.

Charlotte sentia-se arrepiada sempre que ele a chamava por Char, principalmente pela forma como o r se fazia sobressair no final pela sua voz. Ela nunca lhe havia dito nada perante o diminutivo que lhe atribuíra naturalmente, mas desde a primeira vez que ela desejou que não fosse a última.

- Não há problema! Eu estava apenas perdida em pensamentos.

- Acho que logo à noite vamos sair. O meu grupo de amigos marcou num bar aqui perto por volta das dez da noite, queres vir?

Charlotte fez uma careta à pergunta que agora pairava no ar. Instintivamente olhou as horas e mentalmente visualizou o que tinha planeado fazer para hoje, numa tentativa de perceber se iria conseguir concretizar tudo o que queria. A verdade é que ela já era para ter começado há duas horas, mas acabara por se deixar dormir mais um pouco de manhã. Logo, uma súbita ansiedade logo percorreu o seu corpo e se apoderou do mesmo.

- Eu gostava, mas tenho imenso para fazer...

- É sábado...

- O trabalho não pára, Thomás...

Thomás assentiu com a cabeça, aceitando a decisão da sua colega de casa e dirigiu-se para a casa de banho. Charlotte olhou para o seu café e suspirou, pensando verdadeiramente na proposta do seu colega de casa. Apesar de ela constantemente teimar em trabalhar, a maioria das noites dava por si simplesmente a passar o dedo no seu ecrã, torcendo sempre para que as pessoas da sua "antiga" vida aparecessem de modo a que ela se sentisse inteirada e não tão excluída. Por vezes, Charlotte metia conversa com algumas das suas amigas, numa tentativa de combater o seu esquecimento, mas a verdade é que não havia muito a dizer e, por muito que lhe custasse, ela tinha de aceitar. Nem todas as pessoas são para sempre...

O Desassossego da AlmaWhere stories live. Discover now