010 - Exasperado

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Charlotte estava agora completamente imobilizada, tentando aguentar o máximo de tempo possível naquela posição tão desconfortável. Thomás havia adormecido assim, deitado com a cabeça sobre as suas pernas, e Charlotte, com receio de o destabilizar, ali permaneceu, quieta, unicamente atenta ao respirar profundo e melancólico do rapaz que, mesmo a dormir, parecia estar tão incomodado. Receosa do seu gesto, não sabendo bem se por puder acordá-lo ou se por algo mais intrínseco a ela mesma, acabara por tocar com a sua mão quente no rosto de Thomás, atentando a cada mico expressão deste. Os seus dedos deslizavam calmamente pela sua pele áspera, provavelmente seca das lágrimas salgadas da sua dor, e, enquanto isso, um suspiro impetuoso soltou-se por entre os seus lábios carnudos.

A sua expressão ficara mais serena assim que o contacto dela se pronunciara e, enquanto o admirava pacificamente, os seus dedos passaram para o seu cabelo escuro, procurando continuar a reconfortá-lo, transmitindo-lhe a partir deste pequeno ato carinhoso um certo apoio e companhia, ainda que ele não estivesse de todo consciente de que ela ainda se encontrava ali. Mas ela estava e saberia que estaria até ele precisar.

Por breves segundos, lembrou-se do momento trocado entre ambos. A sua barriga logo se manifestou com tal pensamento, transmitindo-lhe ansiedade e euforia, numa mistura insana do qual ela mesma não era capaz de distinguir qual dos dois sentimentos prevalecia. Os seus lábios ainda tinham muito presentes os dele, todo aquele envolvimento, todo aquele toque repleto de carência e desejo. Contudo, o seu cérebro ainda estava a processar o quão real havia sido o momento uma vez que Charlotte ainda estava um pouco incrédula e em negação.

A ansiedade agora estava claramente a tomar conta de si, excedendo-se à euforia que inicialmente estava a sentir com a revisão do momento. Foi só um beijo, dizia para si mesma. Mas na sua cabeça futuros cenárias começavam a surgir, de conversas sobre o assunto, de momentos constrangedores entre ambos, de possíveis declarações por parte dele, de possíveis assumições da sua parte. Respira. Foi só um beijo. Mas os seus pensamentos não paravam. Charlotte queria livrar-se daquilo, queria agir normal, pensar que tudo aquilo seria um problema para depois e que, muito provavelmente, nem sequer precisaria de resolução de tão simples que é, mas, a verdade é que ela tinha receio. Receio de tornar toda aquela relação de amizade estranha, só por causa de um deslize. Foi. Só. Um. Beijo. Charlotte.

A sua outra mão, tão firme e segura no peito de Thomás, lentamente se afastou do corpo de Thomás. Charlotte sentiu um peso estranho no seu peito, uma necessidade excessiva de se afastar dele. As suas mãos começaram a suar com aquela proximidade e quanto mais ela tentava afastar o momento partilhado por ambos, mais vezes ela sentia os seus lábios, as suas mãos a puxá-la para si, o calor do seu corpo e da rua respiração. Não! Chega!

Charlotte inspirou fundo, sentindo o seu rosto começar a aquecer com aquela tortura que estaria a fazer a si mesma. Cuidadosamente, levantou a cabeça de Thomas do seu colo, num desespero enorme de se afastar daquele sítio.

O ar fresco do exterior fez o seu olhar fechar, enquanto os pensamentos se emaranhavam todos dentro de si. Paris estava sossegado, naquele dia tão atribulado. Charlotte queria pegar em todos os seus problemas de ansiedade e atirá-los dali abaixo, desfazê-los em inúmeros pedacinhos de modo a que nunca mais houvesse possibilidade de os juntar novamente. Ela pensava demais e, por conta disso, vivia de menos.

Assim que se recompusera e voltara a colocar os pés na terra, olhara em volta, entristecida com a confusão em que a sua casa se encontrava. Por aquele chão todo estavam espalhados pedaços de um jovem, completamente desesperado e angustiado. Achou, por isso, melhor começar a limpar o máximo que conseguia daquele espaço, o mais silenciosamente possível para o deixar descansar. As peças de arte de Thomás, peças essas nunca vistas por Charlotte, estavam completamente desfeitas, em telas partidas por toda a sala, provavelmente atiradas com força contra o chão ou contra a paredes, que apresentavam marcas de embates.

O Desassossego da AlmaWhere stories live. Discover now