008 - Silêncio

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O batom vermelho ia marcando os lábios carnudos de Charlotte à medida que deslizava subtilmente pelos mesmos. O seu olhar, escuro e penetrante, focou-se na sua própria imagem refletida pelo espelho do seu quarto e um sucinto sorriso surge, devido à sua confiança e aprazimento pela sua aparência. Os seus dedos delgados e preenchidos por inúmeros anéis dourados entranham-se no seu cabelo, curto e negro, numa tentativa de o ajeitar, seguindo-se depois para o delicado tecido de cetim do seu top, de modo a ajustar na zona do peito. Charlotte já se havia habituado ao barulho dos carros que passavam na rua para a qual a sua janela estava virada, mas hoje estava especialmente incomodada, tendo, por isso, colocado os fones com o intuito de se abstrair, tendo, com isso, mergulhado numa onda de jazz pela voz do inconfundível Chet Baker.

Por entre a sua porta semiaberta espreitava o animal negro e, visto que se encontrava sozinha, tentou chamá-lo para lhe fazer uma festinha, mas, mais cedo ela se agachava para captar a sua atenção, mais cedo ele fugia. Os seus dentes mordiscaram levemente os seus lábios, insegura com aquela constante atitude, chegando mesmo a considerar-se uma pessoa repleta de energias negativas, pois só dessa forma era possível justificar, como é que, passado tanto tempo, a atitude daquele animal irracional permanecia igual.

Após calçar as suas botas pretas, retirou os fones dos seus ouvidos e reparou logo em algo diferente do habitual. Vindo da divisão comum, pareceu-lhe ouvir as notícias, algo que naquela casa só entrava em modo de jornal (muito raramente) ou através das publicações das redes sociais, devido à falta de uma televisão. Dirigindo-se para a sala reparou em Thomás, completamente curvado no sofá, já na companhia do seu animal, tão observador e antipático. O francês pareceu-lhe vidrado no ecrã do seu telemóvel mas, assim que reparara na entrada da sua colega de casa na sala, rapidamente saiu da aplicação, quase como se se tivesse assustado com a sua presença. O seu olhar, porém, uma vez que se levantara, observara a rapariga estrangeira de alto a baixo e as suas mãos pararam no seu rosto, cobrindo o pequeno sorriso que ela lhe provocara.

- Vais sair?

- Vou aproveitar o sol e conhecer mais um pouco da cidade. – disse Charlotte, enquanto colocava o livro que recentemente começara a ler, "O General no Seu Labirinto", de Gabriel García Márquez, na mala. – Se quiseres podes vir, de certeza que a Angèle e o Louis não se importam.

- Acho que vou ficar e trabalhar na minha arte. – disse, ligeiramente cabisbaixo, algo que não passou despercebido à britânica. – Mas obrigado pelo convite.

- Vou querer ver isso quando chegar! – exclamou, de modo a estimular a sua criatividade, achando que a sua atitude desanimada estivesse associada à falta de imaginação. Porém, o seu sorriso não deixara de contagiar, ainda que não lhe tivesse durado muito tempo.


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Charlotte estava verdadeiramente encantada e sentia-se concretizada com a sua tarde recheada de cultura, na companhia de Angèle e Louis. A pedido da rapariga dos cabelos curtos, começaram por ver o Panteão de Paris, uma vez que se trata de um monumento neoclássico, dos mais antigos daquela capital francesa. A sua fachada principal, enaltecida por um pórtico de colunas coríntias, era sem sombra de dúvida marcante, não só pela sua beleza arquitetónica como também pela forma como demarcavam aquele espaço que envolvia a obra. Além disso, a sua altura monumental, em virtude da sua cúpula, arrepiara aquela pequena apaixonada, que só deseja que pudesse parar o tempo e apreciar aquele momento para sempre. Charlotte, de olhar apaixonado e brilhante, com receio de que a sua mente se esquece de tão belos pormenores, decidira aproveitar a oportunidade para desenhar.

Seguidamente, passaram pelos magníficos jardins de Luxemburgo, uma vez que se encontravam tão perto. Tudo naquela cidade parecia mágico para Charlotte, ela sentia-se tão completa que só queria ter tempo para contemplar todos aqueles espaços vezes e vezes sem conta, pois sabia perfeitamente que dificilmente se iria cansar. Ali ela sentia-se em paz, feliz, como se não existissem problemas ou preocupações à sua volta. Todavia, devido ao apertado horário, acabaram por prometer voltar ali numa outra altura para apreciarem o espaço de uma forma mais merecedora, uma vez que o seu grande plano para o término daquela tarde consistia em acabarem junto da Basílica de Sacré Coeur, a comer um crepe, sobre a vista de Paris. E, para conseguirem concretizar isso, ainda tinham bastante a percorrer e um metro para apanhar até lá.

O Desassossego da AlmaWhere stories live. Discover now