Khan Al-Khalili

12 0 0
                                    

39.

A manhã já havia começado mais complexa do que o natural. Nem consegui tomar café com as minhas amigas, tive que ir direto para o museu. Apesar de acordar de humor excelente e estar bem confortável com cachecol e saia, tomando um ótimo chá de hibisco, a quantidade de trabalho e meu depoimento final estavam me deixando apreensiva.

Mal conseguia separar e listar tudo, o trabalho de campo me tomava menos saúde com toda certeza. Nessa manhã também recebi cinco ligações da Inglaterra, eu acredito que seja Íman. Decidi restringir nosso contato, ainda não acredito que ele e Nancy estejam envolvidos em algo assim.

- EU NÃO VOU SUPORTAR ISSO!- Um ser apressado e turbulento passou pela porta, vestia uma blusa simples que orientava que acabou de sair de Saqquara, a senhora Faris estava tranquila, parecia já esperar aquele ataque do filho.

- Já falei sobre isso no celular.

- Já falou com Íman? Para alguma coisa aquele...Homem, vai ter que servir- Ele estava nervoso, parecia não conseguir se acalmar- Ele é prepotente, apareceu de terno e gravata no meio do deserto e me demitiu.

Parei ouvindo a conversa, eu definitivamente era uma fofoqueira de plantão:

- Não pode fazer nada, é a parte do seu tio, sabe disso. Eu vou falar com o Tom...

- La, não vai falar! Pode comprometer seu trabalho, está tudo bem. Eu vou...Dar uma volta, já volto e tento ajudar.

- Leve a Thália!- Me olhou através da cortina e sorri sem graça, odeio presenciar brigas familiares- Uma garantia de que não vai voltar para Saqquara.

A obediência e respeito apesar da idade era intrigante, ele sempre a ouvia, sempre conectado a família, um nunca faz nada sem o outro. No carro ele empurrava várias vezes o volante, quando finalmente encostou sua cabeça nele e respirou fundo.

- Eu não ia perguntar, não ia mesmo, mas o que aconteceu?- Falei desprendendo o cinto.

- Thomas abriu a parte dele para sociedade e isso era importante...Não estamos em um bom momento- Controlava sua respiração- O novo sócio foi visitar a escavação, não gostou do sistema de organização e disse pro meu tio que não podia deixar um "Mohamed qualquer" coordenar algo assim e Thomas decidiu que preciso sair.

Concordei com a cabeça, uma coisa muito presente em Khalid eram seus nervos extremamente aflorados, e que detinha um orgulho impenetrável e imaculado, de um perfeccionismo impressionante. A crítica ao seu trabalho e demissão o fizeram entrar em parafuso.

- Um Mohamed qualquer...Somos sempre iguais para essas pessoas.

- Mesmo sendo um Mohamed? Khalid Mohamed- Segurei inconscientemente em seu braço e tentei imitar um de seus sorriso gentis.

- É bom ser um Mohamed não?!- Falou com humor pela primeira vez no dia- Sujeito insuportável, mesquinho e violento.

- Eu não deveria estar te falando isso, mas, mande ele a merda, a casa do caralho- Não era tão fã de palavrões, mas já fui demitida mandar meu chefe tomar onde não bate sol por atitudes inadequadas.

- O que?

- Mandar ele ir para um lugar bem...Desconfortável, não diretamente pelo amor de Deus, não quero me encrencar por ensinar palavrão para um estrangeiro.

- Está me ensinando palavras feias?- Perguntou finalmente dando partida.

- Estou, mas usa com moderação.

...

- Isso é muito bom- Devorava o chamado "Melhor Khochary de Cairo"- Muito bom.

Estavamos no segundo andar de um pequeno restaurante, eu mal respirava, só ia comendo. O Egito vai conseguir me viciar na culinária, é perfeita.

- Vai com calma zahra- Ele nem tocou no próprio prato.

- Eu estou desde ás sete só com um chá- Limpei a boca e apoiei o rosto em uma mão- E faz um tempo que não saio para comer, eu particularmente adoro.

- Posso fazer uma pergunta?

- Uhum- Concordei dando um gole na água.

- Por que está me evitando?

Pensei um pouco e não tinha ideia do que dizer, eu só sentia que não poderia deixar Khalid gostar mesmo de mim, seria horrível ver ele descobrir tudo, esses últimos anos, o acidente. Eu sei que a personalidade forte e racional dele jamais entenderiam, e até lá eu já não saberia mais conviver com a raiva dele, ou nojo.

Minha psicóloga dizia que esse tipo de sentimento não faz sentido, mas para mim faz.

- Porque talvez o que aconteceu no Nilo ou ontem não deva acontecer- Desviava o olhar com frequência.

- É, isso faz sentido, mas toda aquela carga de briga, de intriga e vontade de jogar inti pela janela não voltaria, acredito que nada voltaria a ser como em um mês atrás- Pela primeira vez deu uma garfada no seu prato.

- Não, porque eu estou voltando para casa.

- Não por isso, eu jamais faria o que eu fiz, e parei de tentar não heb inti...Acho que deveria fazer o mesmo- Finalmente tive coragem de encara-lo- Thalia Alves, todo dia quando eu olho para você eu piso em tudo, em mim mesmo, e eu estou adorando fazer isso para ficar mais perto de você.

O sentimento de revolta entranhou em mim, era tarde demais para reverter. Claro Lia, o jeito que vocês estavam no rio é claro que ia dar errado. Sentia que tinha feito uma merda tremenda, mas eu mesmo tempo algo queimava, estava me corroendo desde que ele me olhou pela primeira vez e eu jamais pensei que poderia voltar a querer tanto algo.

Terminei meu copo numa velocidade estranha.

- Eu também não sou mais a mesma, não vou voltar a ser- Ele concordou e levantou.

Sem entender muito eu peguei minha bolsa e andei bem lentamente logo atrás dele, do outro lado da rua uma feira enorme estava montada.

- Khan Al- Khalili- Ele falou bem na entrada, estava bem barulhento, entramos e um mundo de pessoas vendiam de tudo, de tudo mesmo- Eu quero dar uma coisa para você, e você vai entender.

As pessoas falavam alto, barganhavam, turistas enchiam as lojas coroadas com arcos grandes e muito bonitos de passagem, eu teria torrado uma grana aqui em outros tempos. Passei olhando cada chaveiro, jarro, pirâmide, esfinge, tudo.

- Essas lojas são as favoritas dos turistas, aqui é sempre animado- Acenei positivamente e vi um instrumental mais ao fundo numa loja, curiosos atravessamos todo o caminho e entramos para ouvir.

Um homem calvo cantava alto e bem sem ritmo com um tipo de violão bem diferente e tambores para atrair as pessoas. Khalid parecia conhecer e cumprimentou animado o homem, ele levantou os braços e começou a se mexer de um jeito inusitado, e ele não é nem um pouco normal.

Estava muito bravo há trinta minutos, mas eu entendia, estava se distraindo.

Pegou um tipo de lenço com medalhinhas e colocou em meus ombros.

- Vamos- Falou rindo, mexi os ombros e achei também comecei a rir com o barulho enquanto o guia animado se balançava com o amigo.

Minhas zahras, estava com um bloqueio horrível, mas vamos continuar Nilo.

NiloOnde as histórias ganham vida. Descobre agora