'abu alhul

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Meu horário de almoço é sempre angustiante, estou em pé na praça de Tahir com um Shawarma e a mente mais avoada que o normal, a saia enrosca nas pernas e as botas de salto me fazem tropeçar em meio aquele início de tarde em Cairo, meus pés já estão doendo e posso sentir a irritação que começo a nutrir.

O cachecol se embaralha no molho e acaba ficando manchado, meus cabelos passam pelo rosto tampando minha visão sem ter ideia do que estou fazendo, paro um instante para me organizar. Decido voltar antes que mais pequenos acidentes ocorram e minha função é observar a senhora Faris trabalhar, pegar livros para a senhora Faris e pela primeira vez hoje esvaziar a sala dos perdidos.

Dona Munira está na porta me observando chegar, ela é do tipo de pessoa que consegue engolir você vivo com um simples olhar de desinteresse, percebi que o carro de Nancy não estava estacionado nos fundos então tecnicamente saiu, não tinha mais nenhuma serventia ali, mas Munira apontou para o segundo andar, a sala do senhor Henry.

Pouco falei com o senhor Henry durante esses curtos dias, mas sabia que era exigente. Cachecol manchado, cabelo emaranhado e talvez um salto quebrado, passei pelo corredor indo até a maior sala privada do prédio, o senhor Henry mantinha seus óculos circulares e seus cabelos bem alinhados, anotava algumas coisas mexendo fervorosamente a a caneta. Quando observou me destinou um sorriso gentil.

- Pode me ajudar hoje?- Tirou os óculos e me observou, bem desconfortável me contive em retribuir o sorriso- Eu estudei com seu professor e ele sempre insistia na importância disso- Tirou da gaveta um ziploc.

- O senhor me garante que eu não vou ficar com a pá?

Ele sorriu e seguiu normalmente para o nível inferior, no ambiente umas esfinges pequenas, existem esfinges pequenas, menos majestosas, claro. Colocou as luvas e analisou a superfície do objeto me dedicando a atenção minutos depois.

- Okay, senhorita Alves, pegue a pá!- Me encarou sério, mas depois sorriu, as pás são simplesmente para retirar o excesso de sujeira no local, como um pá normal só que em um contexto bem mais simples- Pegue um par de luvas, vamos usar o pincel em áreas diferentes.

Por fora a Thália calma e responsável reinava, por dentro uma criança que acaba de pegar um artefato realmente genuíno queria logo explorar tudo ali, abri a gaveta com as ferramentas e peguei dois pincéis, estava coberta com uma crosta de areia, mas com inscrições na base.

- Senhor Henry- Munira interrompeu- Jamil veio para ver o senhor, é sobre aquelas peças, Khalid queria subir, mas...

- Okay Munira, obrigado!- Ignorou parcialmente a informação e continuou nos detalhes da esfinge, não é preciso mais que eu retrate a indelicadeza de Khalid para invadir locais, entrou e se aproximou do tio.

- Jamil não pode ficar vindo aqui khali- O senhor Faris falou um pouco alterado- Como o senhor recebe um falsificador no Museu do Cairo?

- Ainda não herdou minhas responsabilidades para tomar conta delas- Tirou as luvas com violência seguindo com Munira ao encontro do tal Jamil.

-Está suja! Molho de shawarma?

- Tive um almoço complicado- Dei de combros e tirei o cachecol.

- Achei que estava com a minha mãe.

- Eu estava antes do almoço, mas ela saiu- Ele pareceu surpreso, mas logo ignorou.

Estava em direção ao toque da esfinge fui ate o outro lado da sala e segurei sua mão.

- Nem pense nisso- Ele ergueu as mãos e se afastou me dando espaço para passar o pincel pelas extremidades da obra e limpando lentamente de vestígios de areia.

- Imm acha mais prático usar outros métodos para a primeira etapa.

- Não somos instruídos a fazer isso- Dei de ombros o vendo se aproximar e me observar limpar o topo- Exige delicadeza, é mais velha que nós dois- Coloquei o outro pincel em sua mão o guiando pelas áreas com mais areia com movimentos suaves.

Khalid me observou por alguns segundos e deu um sorriso envergonhado, continuando o trabalho que havia proposto para ele bem rapidamente, gostava de saber pelo menos um pouco mais que ele sobre como tudo isso funcionava, mas quando se tratava da prática ele consegue esmagar meus três anos e meio de arqueologia. Desajeitado por seu tamanho me lançava alguns olhares, escolhia não observar muito, de certa forma ele me intimida.

- Sabe o que estamos procurando?- Perguntou e me confundiu de certa forma.

- Cleópatra?- Sugeri mesmo sabendo da exatidão da minha resposta.

- Sim, isso, e eu queria mesmo falar sobre isso com você- Parecia não ter certeza do que estava falando e isso me deixou apreensiva- Senhorita Alves, eu preciso que me ajude com algumas cópias do relatório da sala dela.

Por um minuto minha consciência explodiu, sim, ele está me pedindo para arriscar meu pescoço com Nancy e roubar arquivos sobre o que ela sabia sobre a expedição era antiético roubar praticamente uma colega de profissão e tutora.

- Tá zoando com a minha cara?- Falei por um momento em português, ele me observou confuso e então eu percebi que mudei de idioma por conta da confusão na minha cabeça- Não, não posso, ela é sua mãe, você esta envolvido nisso, peça para ver.

- Ela não permite, o que me leva a crer que tem algo errado. Eu não estou pedindo para roubar, eu apenas quero saber o que tem lá.

- Me desculpa senhor Faris- Tirei as luvas e as joguei fora, me entrelacei no sujo cachecol e o lancei um último olhar- Eu não posso fazer isso, não tem o direito de me pedir algo assim, nem me conhece.

Continuei meu caminho, ignoraria Khalid Faris pelos próximos três dias, bem cômodo, mas não pude evitar na Quinta-Feira quando percebi que me envolveria mais que o necessário, que estar sobre a sombra do estágio não me bastava, eu precisava ver seu rosto claramente, mesmo que me custasse mais do que esperava.

NiloOnde as histórias ganham vida. Descobre agora