001 - Música e Vinho Tinto

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Nua.

Fora a primeira palavra que Charlotte usara para descrever o espaço que a iria acolher durante o próximo ano. A desilusão preencheu-a, uma vez comparando o apartamento com as bonitas, ainda que manipuladas, fotografias do mesmo, que vira no site online. Todavia, rapidamente, o seu sentimento se desvaneceu, e os seus olhos se deslumbraram, quando a senhoria do apartamento arredou as cortinas e deixou a bonita vista entrar no espaço, preenchendo-o.

Paris.

Poderia alguma vez esta vista perder o encanto? Charlotte, com um sorriso inquebrável, questionava-se, enquanto se ia aproximando, cautelosamente da janela, incrédula com o que tinha à sua frente. O ranger da madeira ecoava pela sala à medida que a rapariga britânica se aproximava, mas ela parecia nem prestar atenção a esse pormenor. O sentimento era irrefutável, sentia a sua barriga inquieta, quase como se borboletas voassem dentro de si. As suas pernas tremiam e ela ia mordiscando o seu lábio inferior, só para ter a certeza de que aquilo que tinha perante ela era, realmente, a realidade. E era.

- Vejo que está agradada. Vou deixar as suas chaves em cima da mesa de jantar. – A senhora comentou de uma forma muito rápida, algo que fez com que Charlotte parasse, numa tentativa de processar informação. Malditos franceses, mais a sua mania de comerem as palavras!

- Obrigada.

- Qualquer coisa que precise, esteja à vontade para me contactar.

O silêncio instalou-se na sala quando a porta da entrada se fechou. Charlotte inspirou fundo logo após abrir a janela, inspirando o ar parisiense. O seu coração enchera-se com a arquitetura daquela cidade magnifica, um campo ao qual ela não conseguia ignorar. A rapariga dos cabelos curtos e lábios encarnados não passava de uma britânica, cheia de brilho, na cidade das luzes. Com mestrado em Arquitetura, Charlotte não podia ter pensado noutro sítio além de Paris para começar a sua vida. Não só tentada pela oportunidade promissora de sucesso, mas também com o objetivo de se distanciar, de começar do zero.

O seu olhar curioso percorreu cada canto daquele novo e, por enquanto, ainda estranho, ambiente, procurando peculiaridades. Tudo parecia estar no seu devido sítio, tudo parecia ter um lugar exceto o sofá, que se encontrava encostado à parede, virado para o exterior. Seguido isto, Charlotte notou logo a ausência de uma televisão, algo a que ela estava tão habituada. Não pôde, também, deixar de reparar num gira-discos azul, pousado em cima de uma mesa de madeira, mesmo ao lado de uma pequena planta. Charlotte sabia que estava a dividir a casa com outra pessoa, até porque os imobiliários em Paris tinham preços que não eram para todos os bolsos. No entanto, isso não a impediu de se sentar no chão e percorrer cada vinil com os seus dedos, de uma forma muito delicada e cuidadosa, como se de um tesouro se tratasse. E decerto que deveria ser, pois nunca tinha visto uma coleção tão grande e com tantos cantores conhecidos. Alguns ela nem sequer tinha ouvido falar, mas isso não a desanimava, só a fazia admirar ainda mais.

Os seus dedos pararam num disco de capa escura com a cara de uma mulher. Todos as outras capas se encontravam imaculadas à exceção desta que tinha algumas marcas de uso nas suas bordas. Charlotte reconhecera a cantora e delicadamente, com um sorriso auspicioso, pousou a agulha no disco, ouvindo o seu ruído inicial e tão nostálgico. E, por fim, Edith Piaf.

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Ainda com algum custo, Charlotte levou as suas malas para o quarto que a senhoria tinha indicado ser o seu. O mesmo encontrara-se fechado à chave e ela agradeceu haver uma chave que lhe desse alguma sensação de privacidade visto que nunca havia partilhado uma casa. Por sua vontade, ela estaria a viver sozinha num apartamento igual àquele e entristecia-a a falta de oferta a um preço acessível para esse sonho se concretizar. Charlotte queria a sua privacidade, queria sentir-se à vontade, andar pela casa de lingerie, trazer quem bem lhe entendesse a casa sem sentir que se está a intrometer na liberdade da outra pessoa. Mas, por enquanto, isso ainda não era possível.

O Desassossego da AlmaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora