27 de Outubro - parte 2

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O que eu sentia podia parecer familiar, mas não era. Eu nunca havia me apaixonado por alguém. Ou se havia, não sabia de verdade como funcionava a coisa. Será que realmente criei uma armadilha e fui pega por ela? Como podia estar tão envolvida, tão certa dos próprios sentimentos e tão confiante dos sentimentos dele? Estaria ele também interessado em mim? Definitivamente havia algo anormal ali. Algo que fazia uma parte de mim ficar avoada todas as vezes em que pensava nele. Sentia um frio na espinha. O coração forte batendo como um tambor. Parecia uma criança. Mas não podia ser assim.

     Nos últimos dias só pensava em Arthur. Deixei o resto do meu cérebro em prontidão, aguardando qualquer pequeno sinal. Aquilo me deixava nervosa. Arthur iria me ajudar. Precisava apenas que ele começasse a fazer isso.

     O rapaz não conseguiu escapar do trabalho, pois era dono de uma firma de exportação. Uma empresa que só funcionava quando ele a dirigia. Os funcionários, aparentemente, gostavam da presença do patrão. Decidi que depois iria aproveitar o tatame, e também o equipamento, para treinar minhas técnicas de luta. Talvez pudesse me dedicar ao ocultismo. Fazia tempo que não abria um livro de magia.

    Conhecia quase a casa inteira, porém percebi que apenas três alas ficavam sempre trancadas. A porta estranha cheia de símbolos, a sacada e o quarto de Arthur. Como não possuía a chave deles para bisbilhotar, resolvi ir ao jardim meditar. 

    Chegando ao local florido e com o cheiro das flores sweet william, sentei-me. Naquele dia havia caprichado no visual: uma bata azul-marinho, com detalhes prateados na costura, uma calça de ginástica preta grudada ao corpo e botas sem salto, para andar com facilidade. Os longos cabelos loiros prendiam-se em um alto rabo de cavalo.

    O jardim mantinha uma beleza exótica com diversos tipos de flores. Eu achava um milagre elas estarem vivas no outono, mas provavelmente Arthur havia feito algo nelas. Folhas alaranjadas ficavam espalhadas por todos os locais. Em algumas partes pareciam compor um tapete cobrindo a antiga grama.

   Sentada, decidi respirar fundo para realmente começar o exercício.

   – O sol me envolve com seu brilho ofuscante. Sinto que sou capaz de iluminar uma cidade. Sinto-me aquecida como um bebê no útero da mãe. A donzela encantada está protegida. Preciso dessa benção para viver no caminho da fé, e não do ódio – recitei em voz alta.

    Fechei os olhos, depois penteei com os dedos a franja para trás, que insistia em cair e embaçar a vista. Enchi o pulmão de ar gelado, ficando com o peito estufado. Foi na expiração que consegui relaxar os músculos.

   – Mostra-me um lugar mágico especial. Senhores, me guiem dando sábios conselhos, ensinando sobre o silêncio incompreensível do mundo. Também as danças antigas das tradições passadas. Mostrem-me este mundo que me prende, mas ao mesmo tempo me liberta.

    Abri os olhos.

   – Hic et ubique – gritei.

   Chamas azuis como um fogo diferente apareceram em minhas mãos deitadas sob o colo. Elas ardiam, me machucando. Pela primeira vez tentava o feitiço. Com a dor, tive dificuldade de pronunciar os próximos versos.

   – Conversem com o céu. Sussurrem para o sol e a lua que sua filha pede sabedoria para esses lendários guerreiros que pairam sobre nós.

   Dei um longo assobio, colocando as mãos em chamas na direção do coração. A dor foi instantânea. O poder que até então pulsava dentro de mim explodiu, livre, e fiquei em chamas de repente, sob o céu cinzento. Elas me consumiram.

   – Bis vincit qui se vincit in victoria – disse com dificuldade.

   Meu corpo começou a levitar. Sentia-me leve como uma pluma, voando pelo céu da Inglaterra. Sobrevoava as flores exóticas.

   – Sinto as chamas arderem em meu interior. Ouço os bons espíritos. Eles me contam os segredos do universo, mostram os prazeres dos gozos das eternas donzelas negras.

   Abri as asas pelo buraco que havia em minha bata. Sentia medo do encantamento, mas precisava aprender esse tipo de coisa. Após tirar minhas mãos pressionadas no peito, todas as chamas se voltaram para elas. Porém, o tamanho das bolas de fogo parecia dez vezes maior.

  – Sinto o fogo vendo minhas irmãs que morreram nele. O azul se transforma em vermelho, sangue que banha minha alma.

  As chamas tomaram a tonalidade vermelha. O encantamento funcionava.

  – Hic et ubique.

   Uma rajada de vento passou pelo corpo. As chamas, agora vermelhas, crisparam para todos os lados.

   – Vejo a mulher, a guerreira, esposa, amante, criança. Vejo-me. Vejo todas elas. Elas me veem. Mutantur omnia nos et mutamur in illis.

   Enquanto eu ardia pelo fogo no jardim, Arthur chegou de surpresa em casa. Ele havia dito que ficaria um bom tempo na empresa. Levei um susto ao deparar-me com ele. Percebi que por hábito olhou para minhas asas, mas também encarou a bola de fogo em minhas mãos. Sua expressão não foi das melhores. Por que parecia tão bravo?

   Não adiantava pensar nisso ali. Havia assuntos sérios a serem resolvidos mais tarde. Isso não podia negar. Pensava que ele estivesse acostumado com magia, já que a mãe praticava diversos feitiços poderosos. Mas precisava continuar com o feitiço. Nunca se deve parar um deles pela metade.

    Agora não flutuava apenas sentada em posição de meditação. Andava em pé, pairando sobre ar, quase como se andasse sobre as flores. Em questão de segundos, um vendaval invadiu o jardim como uma espécie de tornado.

   – Hic et ubique – pronunciei pela última vez.

   Uma bola de fogo do tamanho de um punho saiu da minha boca desenhada, passando rente à cabeça de Arthur, quase incendiando seus cabelos espetados, e parou em uma moita perto dele.

   Em seguida não me lembro de mais nada.

   Aquilo estava virando rotina.

A FadaWhere stories live. Discover now