23 de Outubro - parte 1

660 28 5
                                    

     Jovens costumam ganhar presentes caros, viagens ou festas surpresas em aniversários de 18 anos. Eu ganhei o falecimento do meu pai, o abandono da mãe, uma estranha tatuagem e a descoberta de que não era humana.

    Definitivamente, é difícil esquecer coisas assim.

   - Mel - perguntava a mim mesma em plena Trafalgar Square - , é normal mesmo você passar horas sentada à beira desta fonte todos os dias? 

   Normal, normal...nunca pareceu ser. Afinal, o que significaria ser normal em uma vida assim? Ao menos Londres sempre fora uma cidade mística, ainda mais daquele ângulo, do qual se via a intensa luz do sol que se misturava ás águas trêmulas da fonte, criando reflexos brilhantes como pedras preciosas. Sentia haver um simbolismo de vitória naquela praça que sempre me fascinou. Gostava de observar a imagem esculpida em pedra, oriunda de um trabalho digno de um ferreiro anão tolkieniano, que reproduzia a imagem do almirante inglês Honatio Nelson, herói nas Guerras Napoleônicas e considerado por muitos o maior gênio em estratégia naval já existente.

    A Coluna de Nelson era um imenso monumento que ficava no meio da Trafalgar Square, que eternizava nos céus, a mais de quarenta metros de altura, um dos maiores guerreiros do mar. Ele me lembrava da magia dos antigos heróis e passava o ensinamento de que uma existência memorável envolvia o sacrifício por um bem maior. Havia algum tipo de beleza nisso. O que era sombrio, eu sei. Mas havia certa poesia desenhada em grafite de cores escuras naquela estátua. Ou ao menos deveria haver.

   Todos os dias eu comprava um copo de chá no pub do outro lado da praça e voltava para a fonte, onde observava turistas espalhafatosos ou desacostumados com o frio londrino admirando o monumento. Um monumento solitário como eu. Na verdade, Lord Nelson até me fazia companhia, o que era irônico. Algumas vezes também amizades instantâneas com turistas que pediam informações em idiomas que nada diziam a um anglo-saxão ou se sentaram e puxavam conversa, antes de partir para um compromisso. E, ás vezes, surgiram de um olhar.

   Foi isso o que aconteceu naquela manhã com o menininho de boina azul e camiseta de desenho animado japonês. Ele não parava de me observar, rabiscando algo em uma prancheta já bem gasta, com uma das pontas partida. Inicialmente aquilo me deixou inquieta. Quem ele pensava que era para ficar me encarando daquela forma invasiva, feito um alienígena flácido e descabelado? Depois pensei "Calma, não precisa brigar com o menino". Como andava mal-humorada nos últimos dias. Foi quando a curiosidade atacou e desisti de tomar o meu chá para observar aquele menino. Não havia bem uma explicação lógica para isso, mas reparando o interesse do garotinho por mim, senti um medo súbito me atravessando como uma adaga.

    Seria difícil não se apegar aquele rapazinho frágil parecendo um vira-lata sem dono; é uma coisa meio instintiva, e se você é uma garota, sabe bem como crianças e cachorros costumam fazer isso com a gente. Depois, ele iria crescer e escapar, igual aos caçadores vorazes, para ganhar a própria vida e assumiria uma pureza bem diferente daquela infantil. Fazer o quê? Fazia parte das regras do jogo da vida.

     Aqueles dois olhinhos, que pareciam duas pedrinhas turquesas, continuavam a me espiar por debaixo da aba da boina encardida. Estariam apenas me olhando? Ou estariam observando algo além? Mesmo assim, eu reparei nos gestos suaves, na expressão concentrada, na mistura de cores da aura infantil. O olhar parecia me dizer alguma coisa que eu então não entendia. Novamente me senti desconfortável. Não ficava tranquila com alguém me observando daquela maneira diferente, chegando a ser estranha. Que droga! Loucura minha ou ele olhava para mim como se estivesse...apaixonado? Apaixonado. É claro. Como se alguém pudesse se apaixonar por mim.

    Pensando bem, fazia sentido. Com a minha sorte, se alguém fosse se apaixonar por mim em uma praça como aquela, seria exatamente um moleque sem consciência do que isso significava.

A FadaWhere stories live. Discover now