Prólogo

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26/03/2019

   Mantenho meu olhar fixo no chão, como se fosse o mais interessante de todos os outros que já tinha visto na vida. Faziam quatro anos que eu não sabia o que era pisar novamente nessa cidade.

E tenho que admitir que não sentia falta.

Quero dizer, eu amo o meu país, minha cultura e amo a minha família, pelo menos a maior parte dela, mas aqui as lembranças me atravessam como um punhal me rasgando de dentro pra fora.

Crio coragem e olho ao redor, todos da cidade estão aqui presentes para vê-lo ser velado.

Sinto-me desconfortável.

Eu amava meu avô. Por esse motivo estou aqui, firme e forte, aguentando todos os olhares das pessoas, por ele.

É como se eu fosse uma espécie vinda de outro planeta, olhares são dirigidos e sussurros disfarçados são abafados pelas mãos na frente da boca.

É engraçado pensar que eu achei mesmo que esse tipo de situação não aconteceria nunca mais.

Mas tudo estava sob controle, até ele chegar, com aquele maldito andar confiante e a detestável máscara de tristeza sob o rosto.

Congelo quando percebo que ele está se dirigindo a mim, minhas mãos começam a suar e meu coração se aperta em revolta.

Antes que tudo vá pelos ares vejo minha tia pará-lo para falar com ele e esse é o timing perfeito.

Encontro minha mãe no banheiro enxugando as lágrimas como se quisesse disfarçar o fato de que estava chorando. Ela sorri para mim e nos encaramos pelo reflexo do espelho.

— Ele veio mãe, ele teve um cara-de-pau de aparecer aqui.

Seu olhar diz tudo, ela sabe que essa é minha deixa. Sabe que não posso lidar com ele e suas mentiras em um momento como esse. Minha mãe apenas move a cabeça me dando a permissão que eu queria, lhe dou um abraço e saio do banheiro.

Quando estou a dois metros da porta começo a relaxar, esperançosa de que logo estaria do lado de fora.

Em questão de segundos sou virada para trás por uma mão que segura firme em meu braço, como se temesse que eu escapasse.

— Alice, nós precisamos conversar.

Seu olhar me atinge em cheio e posso sentir a mágoa começando a surgir dentro de mim.

— Eu estive com saudades filha, achei que pudéssemos sair pra jantar um dia desses, colocar os assuntos em dia. Eu tenho tantas novidades.

Não me impressiono pelo fato de ele agir como se nada tivesse acontecido, como se ainda fosse um pai pra mim, como se ainda pudesse me chamar de filha.

— Você não me ligou nos últimos quatro anos. Acho que saudade no seu vocabulário tem outro significado, não é mesmo?

Minhas palavras não o atingem nem um pouco, o olhar brilhante ainda está ali, todo o excesso de orgulho exala por cada um dos seus poros.

— Em todo o caso eu estou de saída e meu voo de volta para Londres sai hoje à noite. Agora que te lembrei que tenho um celular, faça bom uso e me ligue. Torça pra eu estar bem humorada, talvez assim eu seja descuidada o suficiente para aceitar uma chamada de um número desconhecido.

Depois de cuspir as palavras com todo o deboche que consegui reunir, puxo meu braço de sua mão. Saio do local com a maior calma possível, como se nada daquilo tivesse me afetado, mas ao por o pé na rua começo a correr para o único local onde talvez eu tenha um pouco de paz.

 Saio do local com a maior calma possível, como se nada daquilo tivesse me afetado, mas ao por o pé na rua começo a correr para o único local onde talvez eu tenha um pouco de paz

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   Quando era pequena costumava achar que morar no interior era a coisa mais legal do universo. A cidade em que morava em Minas Gerais não tinha nem vinte mil habitantes, todo mundo conhecia todo mundo. Eu podia ficar até tarde brincando na rua porque a violência era praticamente zero. Para mim o melhor lugar no mundo para se viver, era ali.

Incrível como tudo isso se virou contra mim quando atingi a adolescência. Todo mundo conhecer todo mundo não era legal, isso gerava fofoca, e uma coisa mínima que você fizesse em menos de um dia depois já estava na boca de todos. Também aprendi da pior maneira possível que em todo lugar existe perigo, não existe local seguro e estar sempre alerta é fundamental para evitar alguma catástrofe.

Meus pensamentos mudam de rumo enquanto encaro o lago na minha frente. Penso no meu avô, em como sempre corria para os seus braços quando chegava da escola. Me lembro de como ele bagunçava meu cabelo quando me repreendia por estar sendo muito bagunceira. Me lembro do seu cheiro e do seu amor.

Me permito pela primeira vez sofrer o luto. Pela primeira vez eu choro silenciosamente e deixo a dor atingir meu peito. O meu único conforto é saber que esse mundo podre não o possui mais, ele está num lugar muito melhor, me agarro a esse fio de esperança.

Horas se passam e perco a noção do tempo, quando confiro o horário no meu celular meu coração sobe na garganta ao ver vinte ligações perdidas da minha mãe.

Nós tínhamos que pegar estrada pra Belo Horizonte ou perderíamos nosso voo, e se isso acontecesse eu tenho certeza de que ela me mataria.

Levanto da grama em que estava sentada e volto a correr o mais rápido que posso, deixando o parque para trás. Vou ao seu encontro para finalmente poder voltar para o país de onde eu não deveria ter saído.

DEFENCELESS | H.S |Where stories live. Discover now