Cuidados

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 Ao descer da moto, passado o diminuto portão e estacionado no pequeno espaço entre este e a porta da casa, observou Shoto de chave em mãos, abrindo a passagem. O visitante seguiu os dois, com a mão sobre o pedaço de manga acima da abertura presente, em um mecanismo de defesa desnecessário, contudo instintivo. Sentou no sofá como lhe foi indicado, Toya seguiu então a pedir a ajuda do outro em estado saudável:

 — Shoto, pega pra mim o kit de primeiros socorros, tá na terceira gaveta. — pediu e adentrou outro cômodo — Tem uma tesoura em cima, pega também.

 O equipamento era de fácil acesso, basicamente a única coisa guardada ali, o bicolor pousou o objeto na baixa mesa de café e recebeu um sorriso relativamente relaxado de Hawks, o que o deixou confuso, todavia relevou:

 — Vai precisar de mais alguma coisa? — falou alto, para que o parente escutasse do outro cômodo.

 — Não, pode subir se quiser. — respondeu no mesmo tom.

 Enquanto o heterocromático subia as escadas, Dabi aparecia no vão retangular da parede que unia a cozinha com a sala, segurando um pote grande de cor amarelo claro. Pousou o recipiente na superfície de madeira, logo sentando no acolchoado ao lado de Keigo e removendo a improvisação feita logo após ser atingido. Buscou o soro fisiológico dentro da caixa, encontrando-o sem desorganizar muito e o retirando junto a um pouco de gaze, cortando um pedaço da última com a tesoura.

 Despejou o líquido no tecido, passando com leveza no ferimento repetidas vezes, causando um ardor suportável no braço cuidado. Quando se viu satisfeito, jogou o objeto de algodão na mesinha e apanhou o pote plástico, destampando-o:

 — O que é isso aí? — questionou Takami, sem entender, retraindo o corpo.

 — Cocaína. — sacaneou, pegando a colher de metal que se encontrava ali antes de contar a verdade — É só açúcar.

 — Açúcar? — o fato foi confirmado pelo cheiro doce adentrando as suas narinas, ficou mais confuso, arrancando um suspiro do traficante.

 — Fique feliz por não ser suficiente pra precisar de ponto, até porque eu não tenho linha adequada pra isso, eu só vou cobrir com açúcar pra ajudar a cicatrizar, agora vira o braço aí.

 Dito e feito, terminou o serviço enrolando o resto do rolo de gaze e prendendo com esparadrapo. Guardado tudo em seu devido lugar, tomou o assento do outro lado do móvel e ligou a televisão, dando um aviso ao convidado:

 — Quiser ir vai, quiser ficar fica, mas se ficar dorme no sofá.

 — Que cruel, você tem uma cama de casal inteira.

 Deu de ombros, largando a conversa e prestando atenção no noticiário que exibia alguma má decisão do presidente atual, porém o loiro não era muito fã de silêncio:

 — Quer dizer que eu não venho aqui faz... o quê? Um ano e meio? Porque teu irmão menor tá morando contigo?

 — É. — retrucou, seco.

 — Eu não vejo porque não podia conhecer ele.

 — Informação na sua mão sempre é problema.

 — Real, aí você me pegou. — mantinha a expressão brincalhona na face — Mas achei que tinha um tempo que você não se importava mais com isso.

 — Tu ficou pra encher meu saco foi? — montou um semblante insatisfeito.

 — Eu fiquei porque aquele PM alto morreu de um jeito bem feio, prefiro voltar amanhã mesmo.

 — Morreu quem? — intrigou-se, parece que havia serventia em mantê-lo ali afinal.

 — Acho que era capitão, a SH tá fodida.

 — Que susto, porra, achei que tinha sido a gente.

 — É bom não tar me metendo nessa, tô do lado de ninguém não.

 — Disso eu sei bem. — a frase saiu com uma maneira mais frustrada do que pretendia, se repreendendo mentalmente por isso ao ver o sorriso de canto alheio.

 — Fica irritado comigo não, bebê, você ainda é meu cliente favorito.

 — Me chama assim de novo que o próximo tiro que você leva vai vir da minha Glock. — ameaçou com o semblante estoico de sempre.

 — Relaxa, cara, sabe nem brincar. — ergueu as mãos na altura da cabeça em um gesto de rendição.

 Hawks tinha plena consciência que brincava com fogo, no entanto era tão interessante que não podia se conter, se existia algo que não conseguia fazer nem em mil anos era resistir à tentação. Tudo no outro homem lhe atraía, a curiosidade tomava o melhor de si, queria saber como iniciou o incêndio que geraram suas queimaduras, queria entender o ódio que nutria por seu pai e, mais que tudo, porque era tão relutante em se expressar.

 Por vezes adicionava pequenos detalhes à sua memória, como aquele conhecimento médico demonstrado que não fazia ideia de onde vinha. O problema era que toda vez que julgava ter compartilhado uma mínima vírgula a mais que o aceitável, se fechava completamente, levantando interrogações na mente do outro. Não que o loiro fosse um livro aberto, continha seus segredos trancados em si, com medo de afundar ao revelar demais a quem não tinha certeza que estava do seu lado.

 Pelo tempo que se conheciam sabia que se Toya desejasse arruinar sua vida já teria feito algo do gênero, não seria difícil considerando que o território onde seu bar se localizava era da facção da qual ele fazia parte até sete meses atrás, quando foi tomado pela rival. Acabara encarando Dabi por uma quantia de tempo exagerada, incomodando-o:

 — O que você espera encontrar me analisando? — suspirou, com um ar cansado.

 — Do jeito que tá, qualquer coisa eu tô no lucro. Ainda mais que eu não fazia ideia que você tem esse conhecimento médico aí.

 — É o seu primeiro tiro, não o meu.

 — Achei que não participava de invasões.

 Quietude novamente, as palavras só vinham do âncora passando o foco ao jornalista em frente a um hospital. Podia ser chutado pra fora da casa, não obstante, perguntaria o que queria:

 — É por causa do que eu disse que você vai menos lá no bar?

 Era o que faltava para o traficante se levantar, deixando tudo onde estava mesmo em seus lugares incorretos e rumando para os degraus de madeira:

 — Eu vou subir, tem que botar mais açúcar a cada quatro horas no máximo, você consegue fazer sozinho.

 — Eu não ganho um lençol nem nada?

 Retornou apenas para agarrar a roupa de cama branca em um armário e uma almofada preta, atirando no acolchoado sem cerimônia e sumindo no andar superior. Keigo suspirou e desligou o eletrônico, sacando o celular em seguida, ele era impossível.

Boku no morroWhere stories live. Discover now