Capítulo 1.

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(Por favor, evitem spoilers desse livro ou dos próximos nos comentários — ou, pelo menos, deixem sinalizado. Aos novos leitores: infelizmente não tenho como controlar cada comentário, então tomem cuidado se não quiserem encontrar nenhum spoiler. Obrigada pela compreensão e boa leitura!)


Março de 2018.

Meu coração palpitou ao lembrar da necessidade de sair daquele lugar, como se a simples menção dessa ideia já evidenciasse a minha ruína.

Ainda assim, em uma manhã eu já havia visto mais carnificina do que seria capaz de figurar em meus pesadelos mais viscerais, e sobreviver àquele show de horrores para morrer de medo trancada em uma cabine de banheiro ainda parecia a coisa menos digerível do meu dia. Pensei que, se fosse para morrer, que fosse de exaustão tentando lutar contra esses monstros, ao invés de padecer como um rato assustado.

Uma pena que pensamentos heroicos fossem inúteis para me motivar a deixar aquele banheiro fétido em que eu estava trancada. A coragem é linda nos livros, mas na vida real ela pesa uma tonelada e fede como a morte.

Ouvi mais uma vez os gemidos e soube que eles estavam lá — como se alguma hora eu realmente tivesse sido capaz de esquecê-los. Também tinha um cadáver. Esses elementos me eram conhecidos porque eu presenciara o desenrolar da peça macabra que os dera origem, enquanto me obrigava a ficar quieta, pressionando as mãos contra a boca para impedir que o desespero se fizesse presente.

Ignoramos todos os avisos que o inferno estava chegando.

A primeira vez que lembro de ter prestado atenção naquelas notícias foi nas férias de verão. Houveram outras antes, mas a gravidade da doença ainda estava sendo questionada graças às tentativas de censura do governo para evitar o pânico. A propagação de fake news e teorias da conspiração ganhou força, então a população eventualmente parou de levar a sério.

Estava na sala de espera do posto de saúde aguardando o término do atendimento de minha avó, acompanhando preguiçosamente o jornal do almoço. Quinze minutos de notícias corriqueiras antecederam o anúncio feito por uma mulher de terninho escuro: "Trata-se de um espécime novo, congelado pelo que acreditam ser mais de dois mil anos. Os pesquisadores relacionam o repentino retorno à atividade do vírus com o derretimento das calotas polares, resultado da progressão do aquecimento global." disse para a câmera.

O homem de meia idade que dividia a tela com a apresentadora questionou sobre recentes boatos a respeito da morte de cientistas responsáveis pelo estudo do caso. Ainda havia poucas informações sobre essa nova doença e suas formas de transmissão, mas seis mortes já haviam sido confirmadas até aquele momento no instituto responsável pelas pesquisas, em Maryland, nos Estados Unidos.

A partir daí, minha memória se perde, pois minha avó Amélia saiu da sala de consultas, abrindo um sorriso ao me ver. Era uma senhora de quase 70 anos, os cabelos já estavam brancos e rosto era completamente dominado por linhas de expressão, porém tinha a saúde em dia e a beleza conservada.

Senti lágrimas quentes escorrendo pelo meu rosto ao me lembrar dela. Agora parecia tudo muito distante, presa há mais de quatro horas dentro da última cabine do banheiro feminino do meu colégio, acompanhada somente pelo cheiro da podridão e do sangue, além do constante grunhido vindo do lado de fora. Todas as vezes que chorei nesse meio tempo, teve de ser em silêncio. Pouco sabia sobre o que quer que fossem aquelas coisas do outro lado da porta, mas acreditava que se eu conseguisse me manter quieta, ficaria a salvo.

Por enquanto, pelo menos.

É pouco, mas "por enquanto" era tudo ao que podia me apegar. No curto período em que caminhei pelo inferno, tornou-se óbvio o quanto cada segundo era precioso

Em DecomposiçãoWhere stories live. Discover now