Capítulo 25.

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Aquela manhã parecia quase um lapso do que era a vida normal. Claro, com pessoas que em outras circunstâncias nunca estariam em minha casa, mas dessa vez me permiti sentir o doce gosto da ilusão de que o mundo não caminhava para seu fim.

Quando acordei, desfrutei de um café da manhã que me lembrava meus tempos de criança, quando viajava para o interior com a minha avó a fim de visitar a família. Aos finais de semana, fazíamos um enorme café na casa onde a minha bisavó morava, onde todos os tios e primos reuniam-se para confraternizar.

Aquele café da manhã nada mais era do que uma lembrança ilusória, mas suficiente para acalentar meu coração. Não estávamos diante de nenhuma fartura em particular, mas podíamos tomar café quente (embora a maioria de nós realmente nem gostasse) e havia pão e cereais para todos comerem o suficiente. O que realmente me trazia alegria eram as vozes. Altas para o que estávamos acostumados, mas ainda assim sempre em um tom que não ameaçasse a nossa segurança. Por mais surpreendente que me parecesse, sem pesar algum conversávamos sobre as coisas que, mesmo em tão pouco tempo, já nos deixavam saudade.

— Eu me sinto tão estranha não tendo que ir para aula no meio do semestre! — Alana disse, tomando um generoso gole de café. Na verdade, a maior parte do motivo de termos café era a sua insistência: não conseguia entender como nós, adolescentes, não achávamos aquela bebida essencial. — Eu ia ter uma prova essa semana.

— Meu Deus, em que dia nós estamos? Alguém ainda está contando? — Hector se empertigou. Gotas de café voaram de sua caneca, mas ele não ligou, genuinamente perturbado.

Então o brilho do celular de Victória iluminou seu rosto, atraindo nossa atenção.

— Hoje é dia 4 de abril. Começou no dia 25 de março. Quando a bateria do meu celular acabar, vou começar a anotar.

— Como o seu celular ainda tem bateria? — Carlos perguntou — A minha acabou tem dias já. Pra falar a verdade, depois daquele dia no colégio eu nem coloquei mais para carregar. — Quase me surpreendi vendo-o falar. Ele estava bastante quieto ultimamente.

— Eu carreguei um pouco antes da luz acabar de vez. Apaguei todos os aplicativos, desativei wifi, bluetooth, essas coisas que consomem bateria. Ele fica desligado quase o tempo todo, mas às vezes ligo para ver as horas ou conferir o calendário. Parece bobo, mas eu me sinto um pouco bem fazendo isso. — Victória dizia com a voz baixa, os olhos fitando o chão. Percebi como, em comparação ao primeiro dia, Victória havia emagrecido ainda mais. Pensei que provavelmente estava abaixo de seu peso ideal, porém tinha medo de ser indelicada se tentasse conversar sobre.

— Caralho, isso não é louco? — Guilherme disse, tomando um gole de café. Quase imediatamente ele fez uma careta, colocando a língua para fora. Adicionou mais duas colheres carregadas de açúcar na caneca. — Talvez nós sejamos as últimas pessoas do mundo que estejam contando os dias.

Seu comentário não tinha essa intenção, mas todos acabaram ficando um pouco cabisbaixo e Guilherme tentou, com urgência, corrigir-se e falar que tinha certeza que não, começando a tremer de nervosismo.

— Não mesmo. — Interrompi. — Se nós, um bando de estudantes, conseguimos ficar vivos até agora, com certeza um monte de gente mais preparada também está. — Levei a xícara de café até a boca e tenho certeza que a minha careta também foi perceptível.

— Não devia falar assim. Esse bando de estudantes salvou a minha vida... — Alana falou, baixinho. — Eu não tive a capacidade de discernimento de saber que estava me colocando em risco tentando tratar aquelas pessoas.

Ela parecia ter ficado bastante abalada.

— Mesmo assim, isso que você fez conseguiu garantir informações. — Hector disse, não com a intenção de consolá-la, mas genuinamente perdido em seus pensamentos. — Nós não sabemos basicamente nada que tenha algum embasamento científico sobre esse vírus, só boatos de quando as notícias de contaminação estavam a mil. Você disse que aquele casal estava bem até que a febre começou a aumentar. Eles ficaram quase um dia inteiro "bem", mesmo mordidos. A gente não sabe direito quando aconteceu, mas pelo que você contou, não podem ter sido mais do que 8 horas que se passaram entre a hora da morte até virarem esses monstros. Já Ana se transformou mais rápido, mas porque morreu de hemorragia, assim como seu pai. Então, uma pessoa que sobrevive ao ataque pode ficar viva e consciente por algum tempo, mesmo contaminada, mas depois que morre, é questão de horas, às vezes menos.

Em DecomposiçãoWhere stories live. Discover now