Capítulo 31.

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Paramos na esquina de um cruzamento, próximos ao muro acinzentado de uma casa a algumas quadras da minha. Carlos quem ficou na frente do que acabou se tornando uma fila indiana, e cuidadosamente espiava para ver como estava a situação da outra rua, a avenida principal, onde encontraríamos a farmácia. Mei eventualmente se afastava para cheirar os arredores, porém, ao meu comando, voltava para perto de nós.

Minhas mãos tremiam e eu mantinha o olhar fixo em um zumbi parado a esmo do outro lado da rua. Ela (era uma mulher) estava de costas para nós, os cabelos loiros alisados quimicamente quase batiam na bunda, e só conseguimos dizer já morreu (e voltou) pela enorme quantidade de sangue seco impregnada em sua saia jeans. Ela não pareceu se dar conta da gente.

Era um pouco mais fácil agora que entendíamos melhor seu comportamento. Quando uma pessoa morria e voltava como uma criatura daquelas, tornava-se praticamente uma máquina de caça. Certamente não restava qualquer resquício da vida antiga que viveram, seus laços ou suas memórias. Também não pareciam sentir dor, ou frio, ou medo. Somente fome — mas eu nem sabia se era isso mesmo: vírus eram parasitas obrigatórios e seu instinto era de se reproduzir e disseminar.

Outra coisa que parecia ter permanecido quase igual eram os sentidos. Por mais diferentes que pudessem parecer, em suas máscaras pútridas, a semelhança que mantinham conosco eram claras: sua visão, audição e olfato eram semelhantes ao de qualquer humano. O seu modo de caça só parecia ser "ativado" quando detectavam a presa; aí sim, tornavam-se predadores impiedosos. Mas para que encontrassem a vítima, precisava existir estímulo, seja táctil, visual, auditivo ou olfativo. Por isso, ao mantermos o silêncio (na medida do possível, para que os próprios sons naturais abafassem os nossos) e não passarmos em sua linha de visão, aquela mulher-monstro não foi capaz de nos detectar.

O que, claro, não tornava a sua presença menos desconcertante.

Ainda assim, o motivo de alguns serem mais velozes do que os outros ainda era um mistério. O tipo de coisa que, como incontáveis outras dúvidas, ficaria somente martelando em nossa mente pela eternidade, uma vez que não havia a menor forma de encontrarmos essas respostas. Já me pegara pensando algumas vezes se cientistas, com equipamentos necessários, conseguiram sobreviver e estudavam sobre essas coisas. "Cura" parecia uma ideia vaga e boba, diante do estado de semi-putrefação que nossos predadores se encontravam, mas ainda poderia haver uma vacina, talvez.

Outra coisa curiosa era, na verdade, o insistente adjetivo que eu tentava dar para eles: pútridos. Apesar de parecerem tão grotescos e assustadores quanto monstros de qualquer filme de terror, havia essa distinção: eles não pareciam particularmente podres. Claro, suas feridas abertas e infeccionadas tinham aparências horríveis, moscas eram atraídas e logo uma colônia inteira de larvas criava moradia lá. Apesar disso, eles não pareciam exatamente um cadáver em decomposição — o que me deixava um pouco desconcertada, principalmente levando em conta que alguns deles estavam mortos há semanas. Era uma conclusão óbvia, porém difícil de ser aceita: eles não se decompunham como mortos normais. O cheiro que exalavam era repulsivo, suas próprias aparências eram hediondas, mas a maioria ainda possuía os mesmos traços humanos que um dia carregaram.

Alana falou, ainda quando estávamos na minha casa: "Lá no começo, enquanto eu estava presa na loja do meu pai, comecei a pensar no que aconteceria. Como eles morreram, eventualmente iriam se decompor, né? Se fossem cadáveres normais, talvez em um ano estivessem tão pútridos que não apresentaríam mais problemas... E esse apocalipse simplesmente terminaria naturalmente. Só que, até hoje, todos os zumbis que eu vejo apresentam estágios de decomposição muito recentes ou até inexistentes, mesmo parecendo contaminados há mais tempo, pelas roupas e pelo sangue seco... O que eu acho é que eles se decompõem, mas de maneira muito mais lenta. Talvez o vírus também faça isso, sabe? Desacelera a decomposição. E isso é um problema porque talvez em um ano realmente eles apodreçam e se desfaçam, mas talvez..."

Em DecomposiçãoWhere stories live. Discover now