I11I - Espelho

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Eu tinha dezenove, uma idade que para a maioria das garotas da vila significava ser desposada, se antes disso já não fosse, como uma forma fraca de fuga para evitar seu nome na Pira. E tinha sido há três anos, em minha primeira cerimônia como Elegível que Kiros havia pedido, para não falar, exigido minha mão. Como eu não tinha mais parentes, recusar seu pedido foi fácil para mim, não havia motivos para me prender a ele. Não depois de tudo.

O laço que tínhamos, não apenas entre nós, mas com Petra também, tinha sido completamente perdido.

Acordei com um som, uma nota musical, não tinha percebido quando havia dormido, mas lá estava deitada na cama empoeirada. Esperei o som se repetir, mas nada aconteceu, já estava convicta que havia o imaginado quando outra nota soou e então continuou com pequenas pausas sem formar uma melodia concreta.

Decidida a descobrir do que se tratava tirei a cadeira da porta e facilmente me guiei até o lugar de onde vinha à música.

Era da sala que tinha passado mais cedo, a com apenas um móvel coberto.

E lá estava ele.

Deus pagão, monstro ou Lican.

Não importava, contanto que eu conseguisse bolar algum plano para fugir.

- Esta quebrado.– Falou tranquilamente, seus dedos tocavam alternativamente as teclas daquele instrumento.

- O que é? – Perguntei. Seus olhos estranhos se voltaram em minha direção.

- Um piano. – Falou. Mordi o interior da bochecha e desviei meu olhar para longe de seus olhos. Parecia tão tentador correr de volta para o quarto. Quase o fiz se não tivesse visto a mancha rubra em sua camisa branca.

- Porque tem sangue em sua camisa? – Uma pergunta boba, certamente, para quem tem caveiras e ossos em um covil.

- Nossa união não estava sendo respeitada. Tive que por em ordem entre aqueles que me seguem.

- Eles não sabem que isso é uma farsa? – Falei com um leve encolher de ombros.

- Nunca disse que era uma farsa. – Afirmou, pressionando uma ultima tecla. – E não devo explicações a inferiores.

- É bastante arrogante. Me lembra alguém. - Falei por impulso.

- Quem? - De repente parecia genuinamente interessado.

- Uma pessoa de que não gostava.

Ele me analisou.

- Vamos ter que acabar com esse seu péssimo hábito, pelo menos em nossas conversas. Melhora-lo pode nos ajudar em ocasiões futuras.

- Do que esta falando? - Questionei.

- Das suas mentiras. Uma relação precisa de confiança.

Cerrei meus punhos.

- Não temos ou teremos uma relação. – Afirmei.

- Mesmo que isto custe sua vida? - Perguntou. Meu corpo ficou tenso, estava tranquilamente falando com ele que tinha esquecido o que ele era e o que tinha sido capaz de fazer todo esse tempo.

- Mesmo que custe minha vida. - Falei e não houve hesitação. Aquilo me surpreendeu, porque mesmo que eu tentasse manter o otimismo planejando fugas, eu já me via morta em todos os cenários. Nunca tinha sido como as outras garotas desejando um marido e crianças, esse futuro nunca esteve ao meu alcance e agora que não estaria.

- Entendo. - Ele acenou com a cabeça depois voltou a me olhar. - Toda essa rebeldia. Há quanto tempo pensa que ele esta morto?

- O que? - Perguntei surpresa.

- Seu coração.

- Não entendo o que fala.

- Realmente, um péssimo hábito. - Reclamou.

- O que aconteceu com as pessoas que moravam aqui? - Mudei o assunto rapidamente. Porque de alguma forma, ele conseguia me enxergar através das barreiras que impus. Mas não tinha como ele saber, definitivamente não tinha.

- Estão mortos.

- Você os... – Ele não me deixou terminar.

- Não o fiz. – Falou, depois se manteve calado, já tinha desistido de saber quando sua voz soou pelo cômodo.

- Há muito tempo um homem poderoso, mas odioso amou uma mulher bela e amável. Decidido a dedicar sua vida a ela, ele ordenou que esse lugar fosse construído já que a mulher possuía uma saúde frágil e o ar puro da montanha poderia ajudar. A mulher melhorou com o tempo, mas o passado do homem odioso ainda o seguia. Determinado a mudar isso ele saiu em uma viagem, deixando a mulher ao cuidado dos empregados. - Ele olhou de relance para mim. - A natureza humana é muito imprevisível. Inveja, ganância e ódio, os humanos se deixam levar tão facilmente. Vendo a oportunidade os empregados traíram ao homem e a mulher, levaram tudo de valor que encontraram e fugiram para trás da montanha. Na fuga um deles deixou uma lamparina cair. O andar de cima foi incendiado e a mulher morreu sufocada pela fumaça enquanto dormia.

Então era por isso que o andar de cima estava selado. Uma historia trágica, não pensei que fosse de outra forma.

- O que aconteceu depois, com o homem? - Perguntei. Esperei qualquer expressão passar por seu rosto, mas ele continuou em branco.

- Ele voltou para casa e quando viu o que aconteceu foi atrás dos empregados em busca de vingança.

- Você era esse homem? – Perguntei hesitante, ele tinha me dito que os dois haviam morrido, como sabia de tudo então?

- Não, nunca teria me apaixonado por uma mulher frágil e doente ou a deixado sozinha por mais nobres que meus motivos fossem. Uma mulher apaixonada é o tesouro mais precioso que um homem pode ter. O homem foi fraco, um tolo, morreu antes que conseguisse se vingar. Uma vingança administrada por sentimentos levianos só pode resultar na morte de quem a procura.

Suas palavras me tocaram, porque em algum ponto eu podia concordar com ele.

- Você precisa de roupas. – Constatou depois de olhar para mim por um minuto inteiro.

E comida, eu queria acrescentar.

- Vamos até a cidade amanhã resolver isso. Depois poderemos enfim começar seu treinamento. – Ele se levantou do banco. 

- Treinamento? - Pude sentir minha testa franzir - O que planeja que eu faça?

Ele não respondeu, começou a andar em direção a outra porta. Iria me deixar sem resposta outra vez. Me virei irritada, mesmo sabendo do seu último aviso de não lhe dar as costas.

- Quero que mate uma pessoa para mim.

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